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'TransBalho'

Por Daniela Cardozo Mourão (*) | 23/10/2017 07:07

Sem dúvida nenhuma o trabalho é um importante elemento da dignidade. Não é meramente um meio de subsistência, apesar de muitos inconscientemente o diminuírem assim.Ele nos transmite a ideia de serviço. O professor que se sente responsável pelo futuro dos alunos, o motorista que faz o transporte de pessoas ao trabalho, família, hospitais, o pedreiro que se vê erguendo uma catedral. É no trabalho que nos sentimos gratificados pela esforço da nossa força. É no trabalho que temos uma identidade: é o sou padeiro, sou empresário sou vendedor. Por fim, é no trabalho que colocamos a nossas aspirações profissionais e de uma vida melhor.

No caso dos transgêneros é muito difícil, e para alguns praticamente impossível encontrar este elemento da dignidade. Vamos entender isto melhor neste artigo.

É comum eu ouvir e até ver, travestis e transexuais serem considerados vagabundos, pessoas que optaram por própria vontade e gosto a prostituição. Pessoas que estão lá por pura depravação. Isto é querer ver somente o resultado final sem se importar com a causa. A trajetória que trouxe a pessoa para esta vida. Uma análise muito simplista, que vamos nos aprofundar aqui.

As estatísticas da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais ) mostram que o alarmante número de 90% dos travestis e transexuais estão na prostituição, 6% trabalham por conta própria e 4% estão empregados.

As estatística atuais vem de entidades nacionais e internacionais tais como ANTRA, ABGT, UNESCO, TGEU.

Este problema tem sua raiz logo no início da transição de gênero. A imensa maioria, provavelmente a totalidade destes 90% dos transgêneros, em especial travestis e transexuais, relatam um processo dramático da expulsão das seus lares pela família. Há casos que envolvem violência e espancamento, principalmente por pais e padrastos. Há ainda, outros casos em que as mães pedem ou pagam para terceiros espancarem seus filhos. Irmãos que os agridem todos os dias ou simplesmente a família o proíbe de entrar em casa.

E quanto a isto não importa a idade, há um exemplo de uma travesti, hoje muito conhecida pelos seus brilhantes artigos, que relata ter sido expulsa aos 12 anos.

Uma vez forçada a sair de casa, esta pessoa não encontra qualquer porta aberta. Em primeiro lugar porque a maioria dos lugares a desprezam e a querem longe. São comuns depoimentos de pessoas que são expulsas do local onde procuram trabalho, que tem seus currículos rasgados e jogados na lata do lixo ou dizem simplesmente “não trabalhamos com pessoas como você”

As que fazem sua transição mais tarde encontram um pouco mais de oportunidade, se antes de fazerem a transição já alcançaram alguma qualificação ou têm a vida profissional bem estabelecida. Porém, mesmos as mais qualificadas são expulsas do mercado privado de trabalho, percebem a queda no interesse de contratação ou de consumidores do seus produtos, e relatam que após passar em todas as etapas de recrutamento são repentinamente dispensadas após apresentarem suas carteiras de trabalho com o nome civil. Daí uma das motivações para que se facilite a retificação do nome e sexo nos documento de transgêneros.

Uma vez na rua, não resta absolutamente nada para a sobrevivência de transgêneros que a prostituição ou a criminalidade. A primeira é a opção mais comum e legítima, já que prostituição não constitui crime, mas sim a exploração da prostituição. E ao contrário do ditado, não é uma vida fácil. A pessoa tem de estar todo dia na rua (ou na pista), muitas vezes à noite, sofrendo com o frio em roupas curtas. Estando sujeita a todo tipo de risco de violência, não só xingamentos, mas pedradas, pauladas, tortura e até mesmo a morte. Não tem a quem recorrer e alguns policiais não tem se mostrado preparados para estas situações. Infelizmente, segundo várias publicações, alguns membros da força pública de segurança, levados pelo preconceito podem constituir, também, um fator de insegurança e até violência.

No seu “trabalho”, têm de entrar em carros de desconhecidos, sem saber o que carregam lá dentro. Alguns bêbados, drogados e que pedem para elas usarem drogas também. Não sabem se receberão pelo programa ou se serão agredidas por se recusarem a pedidos esdrúxulos, como fazer sexo sem camisinha entre outros.

Seguindo Daniela Andrade, não estão lá esperando uma carreira, promoção, curso de inglês etc. Estão lá pelo mais primário objetivo, a sobrevivência. O viver mais um dia, sabendo que no outro dia estará lá novamente. Tudo para pagar o ponto que é alugado, a comida do dia seguinte, o pequeno cubículo que moram e dividem. Por isso,não tem força de luta. As companheiras que se protegem são na verdade concorrentes, lutando pela necessidade de viver. Algumas sonham em encontrar um cliente que queira se casar ou uma ilusória vida melhor por uma “transferência” para a Europa. Mas, sabem que isto é para poucas. A expectativa de vida de uma travesti, devido a violência e ausência de interesse do setor público, é de 35 anos, não dá para se ter muita perspectiva.

Além da questão do direito de existir na família e sociedade, que só vai ser resolvido quando se tratar este assunto nas escolas e nas famílias, há o problema da falta de qualificação desta população. Basta lembrar que 82% não conseguem terminar o ensino médio. Em algumas escolas sofrem violência por parte dos colegas, ignoradas por professores, orientadores educacionais e diretores. Nestas escolas não reconhecem o seu gênero, recentemente vem sendo adotado o nome social, e ainda são obrigadas a usar um banheiro em que se sentem constrangidas e onde se efetuam as piores agressões. Por tudo isto, não se sentem bem-vindos nestas escolas, e ao perceber que este não é o seu local, não aguentam, e acabam evadindo.

A prefeitura de São Paulo vem desenvolvendo o projeto TransCidadania que visa oferecer alguma qualificação e formação para as travestis de rua.

Porém, de nada adianta a qualificação se as empresas se recusarem a empregar transgêneros. Uma iniciativa positiva é o Fórum de Empresas LGBT, que é uma associação de grandes empresas que adotam a missão de “promover os direitos humanos, a valorização e respeito a diversidade, garantindo uma melhor qualidade de vida profissional para as pessoas LGBT”. Atualmente são mais de 10 grandes empresas patrocinadoras e mais de 100 empresas signatárias, que assumem 10 compromissos de estabelecimento da diversidade dentro da empresa e o respeito à população LGBT no ambiente de trabalho. Elas recrutam, contratam e treinam LGBTs, inclusive transexuais.

Além deste, cumpre destacar o projeto TransEmprego, uma entidade independente, que realiza um cadastro de transexuais e travesti que querem se inserir no mercado de trabalho, e os encaminham a estabelecimentos e serviços que façam o recrutamento sem discriminação.

Segundo Márcia Rocha, do TransEmprego, as empresas relatam que funcionários transgêneros, por sua visão na diversidade, trazem novas soluções para os desafios na empresa. Além de oxigenar o ambiente de trabalho. Estas pessoas, por saberem da dificuldade de encontrar um novo trabalho são funcionários dedicados. Por fim, empregar transgênero é uma importante iniciativa de combater o preconceito, pois além de colocar estas pessoas com poder econômico e vivência social, leva os outros funcionários a entenderem e respeitarem a diversidade e transmitirem suas experiências. Um bom exemplo é quando a pessoa transgênero ocupa cargos de chefia. Rocha também diz que as empresas que contratam LGBTs, acabam contratando mais funcionários posteriormente. A IBM conta hoje com cinco funcionários contratados paulatinamente através do TransEmprego.

Um ponto importante, que são também tratados nestes projetos, é que não basta somente empregar um transgênero. É preciso que haja um ambiente de trabalho acolhedor. É comum que um transgênero que faça sua transição dentro de uma empresa, mesmo as públicas, passem por humilhações, perseguições e chacotas. Institucionalmente algumas destas empresas não respeitam o nome social, banheiro e não dão atenção para as queixas das vítimas. Colocam a culpa na própria vítima por não saber se “comportar” lá dentro até que chega um ponto de não aguentarem e se verem obrigados a sair.

Assim, estes projetos, também promovem palestras e estabelecem diretrizes de acolhimento e respeito para os funcionários transgêneros. E os resultados têm sido positivos. Uma coisa que percebo é que a resistência das pessoas para este grupo está no total desconhecimento sobre o assunto. De entender que nada é uma escolha e tudo é um processo.

Outro ponto necessário é preparar o funcionário para a nova vida. Eles estavam acostumados a uma vida de rua e receber o próprio dinheiro, mesmo que muito pouco. Na vida do trabalho eles têm horários, chefia, obrigações e metas. Se não forem conscientizados e preparados para a nova vida, podem ter um sentimento de estranhamento e deslocamento, e acabam voltando para a vida antiga. Porém, após um período de adaptação, eles logo se sentem mais à vontade, se sentindo fazer parte da sociedade de novo. Em suma, passas a se sentir cidadãos.

Obviamente vivemos um problema de desemprego, que tem de ser pensado e resolvido. Mas, aqui a questão é outra. Não o é um problema político econômico. Mesmo que nosso país vivesse uma era de prosperidade, estas pessoas continuariam desempregadas. Portanto, é um problema social. Mais ainda, é um problema de preconceito e discriminação. Há estes e outros projetos, que o espaço não me permite descrever, para atenuar este problema. Isto é bom, porém, o problema persiste e ainda é grave.

Espero aqui ter desmistificado a ilusão, que alguns têm, que travestis e transexuais estão próximo a algumas casas se prostituindo por opção e depravação. Eles são o que são, e não poderiam ser diferentes. São pessoas, e deveriam ter os mesmos direitos como eu e você. Inclusive o direito ao trabalho, que para nós é natural e uma conquista, mas para eles não passa de um sonho eles aprenderam a se aceitar, e falta o mundo os aceitarem

(*) Daniela Cardozo Mourão é professora da Faculdade de Engenharia da Unesp de Guaratinguetá.

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