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Tudo o que é sólido desmancha no ar

Por José Carlos Marques (*) | 03/05/2019 09:52

Quando o Brasil se sagrou campeão mundial de futebol pela primeira vez em 1958, na Copa da Suécia, reza a lenda que o capitão Bellini, ao receber a taça do torneio – a célebre Jules Rimet –, teria sido alvo também da solicitação dos fotógrafos ali presentes para que erguesse um pouco o troféu, a fim de que “saísse bem na foto”.

Um pouco titubeante, Bellini segura o objeto com as duas mãos e ergue-o sobre sua cabeça. Inconscientemente, o zagueiro estava inaugurando ali um gesto tópico, cerimonial e icônico, que seria mimetizado a partir de então por milhares de atletas sempre que se vai comemorar uma conquista, seja no futebol ou em outras modalidades.

Em 1970, ao conquistar o tricampeonato mundial de futebol, Carlos Alberto Torres (então capitão da Seleção Brasileira) também ergue sobre a cabeça a Taça Jules Rimet – primeiro de forma tímida, depois com força e confiança, talvez simbolizando ali o peso e a responsabilidade de figurar num momento tão solene ao lado de craques como Pelé, Rivelino, Tostão, Gerson e Jairzinho.

Tal ato sofreu uma desfiguração em 2002, na Copa do Mundo do Japão e da Coreia do Sul, quando o Brasil conquista o pentacampeonato no futebol. O lateral-direito Cafu, à época capitão do escrete, recebe a nova taça da Fifa das mãos de Pelé e então, esquecendo-se de que representava uma coletividade nacional, quebra todos os protocolos, sobe no pedestal da cerimônia, declara juras de amor à mulher Regina e faz questão de homenagear o Jardim Irene, bairro da periferia de São Paulo de onde ele saiu para conquistar o mundo. Podemos até compreender o ato de Cafu como uma subversão ao script cerimonial previsto, numa oposição às comemorações quase sempre assépticas organizadas por entidades esportivas.

Nada se compara, entretanto, àquilo que se tem visto no Brasil nos últimos anos nas cerimônias de entrega de taças de campeão às equipes de futebol, ocasião em que os atletas começam a perder espaço para os penetras e “papagaios de pirata”, quase sempre políticos ou dirigentes esportivos que querem ampliar sua aparição midiática por meio da cena esportiva. Exemplo maior disso foi visto no final de 2018, quando o Palmeiras começa a celebrar em seu estádio o título de campeão brasileiro ao lado de Jair Bolsonaro, então presidente recém-eleito para o cargo máximo da República.

No dia 21 de abril, quando a maior parte dos campeonatos estaduais de futebol terminaram em todo o Brasil, chamou a atenção do público a cerimônia de entrega da taça de Campeão Paulista ao Corinthians, no estádio de Itaquera. O goleiro Cássio, capitão corintiano, teve que literalmente dividir o troféu com o deputado estadual Cauê Macris, presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo, que parecia querer tomar para si o objeto do atleta alvinegro.

Não menos constrangedora era a cena de quem estava ao lado, com medalhas ao peito: Aildo Rodrigues, secretário estadual de Esportes de São Paulo (que ao menos parecia mais contido em sua aparição), e o Major Olímpio, senador eleito em 2018 por São Paulo. Este, aliás, nem portava algo que fizesse alusão ao Corinthians; pelo contrário, sua veste era uma camisa da Seleção Brasileira com o número 17, o mesmo de seu partido (PSL).

É óbvio que em momentos de intensa exposição midiática seja previsível imaginar que oportunistas e arrivistas de toda espécie hão de querer ganhar alguns segundos de fama ao lado dos verdadeiros protagonistas do espetáculo – neste caso, os atletas. Isso acontece também no mundo das celebridades, das artes e do espetáculo.

E é óbvio também que as presenças de um secretário estadual, de um senador e de um deputado estadual no gramado do Itaquerão só se tornaram possíveis por obra da permissão e do convite feito por Andrés Sanches, esse dublê de presidente do Corinthians e de ex-deputado federal, que não deixou saudades em Brasília e que parece mais articulado politicamente agora do que quando representou o Estado de São Paulo junto ao Congresso Federal.

Parafraseando o autor norte-americano Marshall Berman e o título de sua obra clássica – Tudo o que é sólido desmancha no ar –, parece que o sagrado se tornou profano inclusive nas comemorações dos títulos de campeão do futebol. O ato cerimonial de se erguer uma taça de campeão inaugurado despretensiosamente por Bellini em 1958 desfigurou-se a tal ponto de agora prestar-se a contar com a presença de mãos indevidas que querem tocar no troféu com mais protagonismo do que os próprios campeões.

Daí que chama a atenção o ato promovido pelo Esporte Clube Bahia, mais uma vez campeão em seu Estado. Ainda que o clube também tenha contado em alguns momentos de sua história com ações nada republicanas de seus dirigentes, pelo menos em 2019 destaca-se a sensibilidade e a gentileza do tricolor baiano. Em vez de dar protagonismo a dirigentes e a políticos, a agremiação soteropolitana convidou para erguer a taça ao lado dos atletas o funcionário de carreira Adherbal Amaral, há mais de quatro décadas no clube.

Adherbal Guerreiro, como é conhecido, tem 81 anos e luta contra um câncer. Nada melhor do que homenagear um funcionário anônimo e que está envolvido com a história e o cotidiano do clube do que permitir que a solidez de um troféu se desmanche no ar sempre que é ungido indevidamente pelas mãos ímpias de quem pouco faz para enobrecer o esporte.

(*) José Carlos Marques é integrante do Ludens (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas) do Departamento de História da FFLCH-USP.

Publicado iniciamente no Jornal da USP.

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