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Cidades

Guerra do Estado contra o PCC só fez a facção crescer, diz pesquisador

Pesquisador e autor de livro inovador sobre a facção, Gabriel Feltran explica porque o Estado está a anos luz de entender o PCC

Izabela Sanchez | 27/01/2020 07:11
Gabriel Feltran, autor do livro "Irmãos: uma história do PCC" (Foto: Divulgação)
Gabriel Feltran, autor do livro "Irmãos: uma história do PCC" (Foto: Divulgação)

“Não adianta querer, tem que ser, tem que pá/ O mundo é diferente da ponte pra cá”, parte da letra da música “Da ponte pra cá”, do grupo de rap brasileiro, Racionais Mc’s é mais ou menos o que o professor do Departamento de Sociologia da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) e autor de um dos livros mais inovadores sobre o PCC (Primeiro Comando da Capital), Gabriel Feltran, explica sobre o sistema de “lideranças” na maior facção brasileira, se é que podemos falar em líder.

Gabriel é autor do livro “Irmãos: uma história do PCC” (Companhia das Letras). Ao Campo Grande News, contando a história dessa facção, a corrida sem sucesso do Estado para desmontá-la e a fuga em massa recente, ele sustenta que a estrutura do Estado, seja no Brasil ou no Paraguai, está anos luz de entender o PCC. Na avaliação dele, não estamos assim tão melhores que o país vizinho de onde fugiram, na madrugada do último domingo (19), da Penitenciária de Pedro Juan Caballero, 76 presos do PCC.

Quem abaixa o crime é o PCC – O livro é resultado de um trabalho que Gabriel começou ainda no ano de 2000, nas favelas de São Paulo. Ali ele entendeu que os “tribunais” internos do submundo do crime tinham organização e eram responsáveis, inclusive, por derrubarem as taxas de homicídio nos Estados de São Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul.

“Quando comecei a conhecer melhor outros lugares e a trocar informações com outros pesquisadores do tema, mas também com artistas de samba, rap, pagode, funk, fui me dando conta de que era algo muito maior. Muito mais amplo, que estava em todas as favelas do estado de São Paulo. Daí me dei conta que, nas estatísticas, essa redução era notável. Havia dez vezes menos homicídios nas favelas em 2010, comparado ao ano de 2000, época em que as curvas atingiram seu pico. Ainda hoje, São Paulo tem as menores taxas de homicídios por 100 mil habitantes do País, menos de 10/100 mil. Mato Grosso do Sul e Paraná, estados também fortes do PCC, têm também taxas bem reduzidas” diz.

O PCC se mostra ao mundo – “Paz, Justiça e Liberdade”, essa faixa que apareceu escrita no chão de terra do campo de futebol no complexo penitenciário do Carandiru, e em outros presídios do Estado de São Paulo, em fevereiro de 2001, mostra o que o Estado tentou esconder até então. O PCC havia chegado para nunca mais sair.

Este é um dos lemas, ainda que alterado com o tempo, dessa organização que não é o que dizem dela: o que Gabriel explica é que o PCC pode ter armas que nem o exército tem, pode ter até soldados e tem negócios com cifras bilionárias (legais e ilegais), mas não é empresa e nem milícia. É uma fraternidade secreta. Com estatuto próprio, o objetivo é melhorar a vida dos “irmãos” e nasceu da revolta com a opressão estatal nos presídios.

“Todas [facções] nascem do mesmo lugar: dentro das instituições estatais. A diferença é que, em São Paulo, na virada para os anos 1990 (o Massacre do Carandiru foi em 1992), havia uma política de matar bandido, achando que iria melhorar a segurança. Foram as mais altas taxas de letalidade da história, a polícia matava 1500 pessoas por ano nessa época, no estado. Ali aprendemos que essa política, além de ser absurda numa democracia, não é efetiva – o resultado dela foi o fortalecimento do PCC”, afirma.

Gabriel explica que a partir de 2001, muitos conflitos internos e mortes de lideranças deram forma ao que hoje ele chama de fraternidade secreta. “A tendência vencedora propunha o modelo de sociedade secreta, de fraternidade, que vai se consolidar dali para frente”, comenta.

“O modelo que uso para entender a forma de organização do PCC é a das fraternidades secretas, como a maçonaria, por exemplo. Nessa organizações não se confunde economia e política, e não há mando interno. Eu posso ter negócios milionários com droga, mas isso não me faz ser considerado como alguém acima de uma pessoa que não tem muitas posses, mas que tem muito respeito entre os ladrões”, esclarece.

o lema do PCC era "Paz, Justiça e Liberdade". Depois, incluíram "Igualdade" (Foto: Eduardo Knapp/Folhapress)
o lema do PCC era "Paz, Justiça e Liberdade". Depois, incluíram "Igualdade" (Foto: Eduardo Knapp/Folhapress)

Quem “lidera” os irmãos – É quem tem respeito pelos feitos entre os próprios irmãos, pela conduta irreparável e quem tem a mente blindada no jogo eterno de perseguição do Estado. É o que afirma o pesquisador. “O que conta é a conduta de cada um no crime, e busca-se sempre premiar com responsabilidades, na facção, aqueles que têm conduta considerada irretocável, pelos pares, frente aos valores do crime. São ambientes de muita pressão – está todo mundo perseguido há tempos – e avalia-se quem aguenta melhor essa pressão, quem tem a mente blindada, como eles dizem.”, comenta.

“Não há dono, não é o mais rico que manda, no PCC, como é numa empresa. Não há generais no PCC, como houve nos anos 1990, como existe em toda organização militar. Essa é uma forma equivocada de compreender a facção. Quem está numa posição de responsabilidade, numa responsa, como se diz, deve agir corretamente e de dar exemplo aos seus pares. Assim o Comando se pensa, a si mesmo”, emenda.

Então, quem lidera? – Estruturado com o que a facção chama de “sintonias”, os setores do PCC, Gabriel diz que não é possível nem dizer que Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola (preso no Presídio Federal de Brasília desde março de 2019) seja o líder máximo da facção, o que não significa que não personifique uma das figuras de maior respeito para o PCC.

“Nunca tive nenhuma informação de que Marcola é chefe, dono, ou o número 1 do PCC. Essa é uma informação construída há muito tempo pela imprensa. O que aprendi fazendo pesquisa é o que afirmei acima, que as sintonias e a hierarquia dessas sintonias é pensada de modo a despersonalizar o poder. É a posição a que tem o poder. Se a pessoa que ocupa uma sintonia é transferida de cadeia, por exemplo, a posição pode ir com ela ou ficar, a depender da situação de comunicação e atuação que essa pessoa vai ter, no seu destino”, comenta.

O escritor explica que o PCC institucionalizou uma forma de organização fraterna já há muito tradicional. “São formas que hoje deixaram de existir no mundo dos negócios ou no Estado, mas que existem há séculos, se não milênios. São formas que se desenvolveram contra a ideia de Estado, e portanto são tradicionais, existiam antes da modernidade, e seguem existindo em ambientes específicos”.

Apontado como líder do PCC, Marcos Willians Camacho, o Marcola, em 2005 (Foto: Jorge Santos/Estadão Conteúdo)
Apontado como líder do PCC, Marcos Willians Camacho, o Marcola, em 2005 (Foto: Jorge Santos/Estadão Conteúdo)

Paraguai - E são só irmãos, diz, já que é estruturada em figuras masculinas. Gabriel afirma que não é possível estabelecer uma linha cronológica clara da chegada do PCC ao Paraguai e na fronteira, ainda que a morte de Joge Rafaat, em 2016, em Pedro Juan Caballero, seja atribuída ao PCC e possa ser considerada um marco divisório na organização que luta para dominar a linha de fronteira no tráfico de drogas.

“Sabe-se há muito tempo que São Paulo, Mato Grosso do Sul e Paraná são os estados com maior hegemonia do PCC, tanto nas cadeias, quanto nas periferias. Mas a facção está presente em todos os estados da federação, e pontos nodais dos mercados ilegais, ou do mundo prisional, são sempre pontos relevantes para as facções, e portanto para o PCC. Muitas das atividades econômicas dos irmãos, e de muitos outros ladrões e traficantes, se inscrevem em mercados ilegais transnacionais (tráfico de armas e drogas, contrabando, roubo e tráfico de veículos etc.) há muito tempo”, diz.

Hegemonia política, não monopólio econômico – É uma das ideias que o pesquisador defende, já que fala de não haver comprovação de que o PCC domine, sozinho, todos os territórios da droga e outros produtos onde é conhecido por atuar.

“A hegemonia política do PCC em São Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul é, até onde sei, inconteste no universo criminal, mas não é total, evidentemente. Em outros estados, ela é disputada na medida em que a facção pode e quer disputar. Como é em toda disputa política, afinal”, esclarece.

Mesmo quem não é irmão corre com os irmãos - Uma coisa, admite, pode estar mudando com a necessidade de expansão se de se manter forte nas zonas de guerra aberta: o batismo. Pode estar em curso a formação, por necessidade, de soldados que não necessariamente cumprem todas as exigências rígidas do PCC para batizar um novo irmão.

“As informações que circulam nos mundos jornalístico e policial dão conta de que nos estados em que há mais conflito armado, estão flexibilizadas muitas das normas comumente utilizadas para batizar um irmão. Essas normas visam garantir o compromisso do sujeito com o crime, a partir de uma caminhada sem reparos no universo criminal. Eu não fiz pesquisa especificamente sobre esse ponto, mas de fato parece fazer sentido que haja essa flexibilização em situações de guerra aberta”, conta Gabriel.

Gabriel Feltran, professor e pesquisador da UFSCar (Foto: Divulgação)
Gabriel Feltran, professor e pesquisador da UFSCar (Foto: Divulgação)

Conforme explica o pesquisador, ainda assim, até quem não é irmão, corre com os irmãos.

“Outra questão importante é que não é preciso ter irmãos em um lugar, para que o PCC esteja lá. Muitos e muitos correm com o Comando, por desejo de pertencer ou por considerarem suas formas de atuação justas, para eles, sem mesmo serem batizados”, diz.

Estado já perdeu – Ao aplicar lógica e estratégia errada, diz Gabriel, o Estado já perdeu a guerra contra o PCC e outras organizações criminosas. E vem perdendo desde a década de 1990, diz. É dessa forma que, comenta, não estamos tão melhores assim quando comparados com o Paraguai. Até porque, dias depois da fuga no Paraguai, presos também fugiram no Estado do Acre.

“Podemos dizer que temos, ao menos desde os anos 1990, apostado num modelo genérico de segurança que é ineficiente e injusto. Que esclarece menos de 15% dos homicídios do país, que não investe minimamente em pesquisa qualificada, mas quer comprar drones que dão tiros. Que não regula os mercados ilegais minimamente; que não está associado à legitimação estatal por meio da entrega de justiça a todos; que não investe o que deveria em políticas públicas preventivas e que encarcera imaginando – porque é só imaginação – que as cadeias: 1. Isolam alguém da sociedade, e não são parte dela; 2. Recuperam alguém, quando sabemos que na grande maioria dos casos o encarceramento apenas impõe suplícios e incita mais organização criminal. Se a melhor forma de prever o futuro é olhar o passado, podemos dizer que não está dando certo, e que não dará certo. Não estamos em condição de nos considerarmos superiores a ninguém, portanto”, finaliza.

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