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Capital

Ataque por prioridade em vacina é nova versão do ódio já enraizado, dizem índios

Em Dourados, ataques registrados devido à destinação do imunizante para reserva indígena foram denunciados à Polícia Federal

Aletheya Alves | 24/01/2021 09:03
Aldeia urbana Marçal de Souza, em Campo Grande. (Foto: Paulo Francis)
Aldeia urbana Marçal de Souza, em Campo Grande. (Foto: Paulo Francis)

Assistindo de longe os ataques dirigidos a quem vive nas aldeias, até indígenas que moram na cidade sentem uma nova versão do preconceito violento contra essas comunidades: o ódio contra o grupo que entrou na fase prioritária da vacina contra a covid-19. Em Dourados, os guarani voltaram ao alvo depois de receberem 22 mil doses do imunizante, destinadas à reserva indígena.

Neste primeiro momento, a população indígena de aldeias urbanas não será contemplada com as doses, porque não está isolado em reservas distantes, nem têm o agravante da miséria encontrada em confinamentos comuns nas aldeias de Mato Grosso do Sul.

Cacique da comunidade indígena Marçal de Souza, na região do Bairro Tiradentes, Josias Jordão Ramires, de 33 anos, se solidarizou com os guarani chamados de "peste", "cachaceiros" e "vagabundos" por pessoas revoltadas pelo fato de serem prioridade na fila da Coronavac. "Repudiamos qualquer tipo de falas ofensivas, preconceituosas. Respeito aos Povos Indígenas. Somos 520 anos de resistência”, disse.

Postagem do cacique Josias Jordão sobre discursos preconceituosos em redes sociais. (Foto: Reprodução)
Postagem do cacique Josias Jordão sobre discursos preconceituosos em redes sociais. (Foto: Reprodução)

Ao Campo Grande News, Josias lembrou que os ataques recebidos nos últimos dias não são novidade, apenas mais uma desculpa para quem quer expressar a raiva. Mas a estratégia é evitar o contrataque  com a mesma violência. “O preconceito sempre existiu, mas estamos acompanhando nas redes sociais o que tem acontecido. Não revidamos com a mesma moeda, temos que mostrar como reagir bem, não fazemos o que eles fazem”, explicou.

Em luta para que a comunidade, que é classificada como aldeia urbana, receba prioritariamente as próximas doses da vacina, o cacique relata que das 700 pessoas que vivem na Marçal de Souza, 90% tiveram covid-19. “Sete morreram, são muitas pessoas. Nossas comunidades são vulneráveis e precisamos lutar por isso. Até o momento não houve nenhum posicionamento de que iremos receber, mas estamos tentando”.

Considerando dados do IBGE e o plano nacional de imunização contra a covid, o governo federal exclui mais da metade dos indíos do Brasil nessa primeira fase de vacinação. Apenas 45% da população indígena está no grupo prioritário para receber a vacina.

Luto e preconceito - “Tivemos muitos óbitos, são apenas quatro ruas, mas sete mortes. Sentimos demais, continuamos sentindo até hoje”. Tentando sintetizar como tem sido a pandemia na Marçal de Souza, a acadêmica de engenharia civil, Bianca Francelino, de 19 anos, relata que o enfrentamento contra preconceitos diários se somou à preocupação com os anciãos.

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Não é de hoje que isso acontece, que as pessoas falam. De toda maneira a gente tenta lutar contra. É uma coisa que faz a gente crescer, que a gente continua indo à luta, Bianca diz.

Sobre a necessidade de prioridade também em aldeias urbanas, Bianca relata um trecho das dificuldades sofridas no cotidiano das comunidades. “Os indígenas dentro da cidade não tem amparo. Estamos totalmente abandonados, é um descaso a mais. O indígena é muito retraído, tímido. Se ele fala sua língua terena, ninguém vai entender. São vários pontos que precisam ser analisados”.

Em relação ao ódio durante a pandemia em conjunto com o luto, Bianca conta que enquanto a comunidade tenta continuar lutando. “A vacina é essencial, muitas pessoas que trabalham fora precisam, até porque a maioria são idosas. Pessoas que sabiam fazer remédios, artesanato, que representavam toda uma cultura morreram”, disse.

Redes sociais - Insistente contra os comentários em redes sociais, Bryan Soares, de 20 anos, conta que perdeu as contas de quantos discursos odiosos foram respondidos por ele. “Os principais comentários são de que ‘o índio não participa, não contribui para economia’. O avô da Bianca participou na construção da rodovia estadual de MS, então como não participa?”.

Bryan Soares, de 20 anos, relata que perdeu as contas de quantos comentários preconceitusos viu. (Foto: Paulo Francis)
Bryan Soares, de 20 anos, relata que perdeu as contas de quantos comentários preconceitusos viu. (Foto: Paulo Francis)

Para o acadêmico de direito, os comentários preconceituosos continuam se repetindo há anos e agora se mostraram mais uma vez. “A gente vê o quanto as pessoas ainda são racistas mesmo com o indígena estando próximo, estando em lugares importantes. Parece que as pessoas não entendem ou que se fazem desentendidas mesmo”, relatou.

Em sua família, sua avó, de 62 anos, teve covid-19 e a preocupação é que o cenário continue complicado, principalmente sem a vacina.”Nossa comunidade tem muitos anciãos. A gente vai aprendendo com eles, aprende nossa origem, de onde viemos. É muito triste viver com esses comentários preconceituosos, mas com isso a gente cresce mais”.

Crime em investigação - Em Dourados, a denúncia foi feita pelo promotor de justiça João Linhares Júnior, com base em comentários colhidos em reportagem do site Dourados News. A matéria falava sobre a destinação da vacina à comunidade indígena.

Comentário feito em reportagem sobre destinação de doses da vacina à comunidade indígena. (Foto: Reprodução)
Comentário feito em reportagem sobre destinação de doses da vacina à comunidade indígena. (Foto: Reprodução)

Prints de comentários diziam frases como “isso mesmo, imuniza essas peste que não produz nada… bando de cachaceiro” e “eu acho um absurdo isso, para nós que saímos todos os dias para trabalhar e produzir, pagamos impostos, temos que ser os últimos da fila. Agora, índio e bandido que só dão despesa têm que ser os primeiros. Isso é Brasil”.

A denúncia foi encaminhada para a Polícia Federal, que irá apurar como discurso de ódio mediante a prática de racismo. O crime está previsto no artigo 20, parágrafo 2º, da Lei n. 7.716/1989, em que a pena varia entre 2 e 5 anos, além de multa.

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