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Capital

Infectologistas criticam compra de coquetel anti covid pelo município

Divulgar uso de medicamentos sem eficácia comprovada para tratamento do novo coronavírus pode configurar infração à ética médica

Jones Mário | 14/07/2020 15:50
Caixa de ivermectina, um dos medicamentos que compõem o kit prevenção do município (Foto: Paulo Francis/Arquivo)
Caixa de ivermectina, um dos medicamentos que compõem o kit prevenção do município (Foto: Paulo Francis/Arquivo)

A prefeitura de Campo Grande vai gastar pelo menos R$ 863 mil com medicamentos para composição do chamado “kit prevenção” ao novo coronavírus, como hidroxicloroquina, ivermectina e complexos vitamínicos. Apesar do endosso do CRM-MS (Conselho Regional de Medicina), infectologistas condenam a adoção do coquetel como política pública de enfrentamento à covid-19.

A crítica se apoia no raso lastro científico sobre a eficiência da hidroxicloroquina e da ivermectina no tratamento da doença. A primeira é indicada para tratamento de artrite, lúpus, doenças fotossensíveis e malária. A segunda, para infecções provocadas por vermes e piolho.

Não há estudos conclusivos sobre a eficácia das duas drogas em pacientes de covid-19 e, por isso, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), responsável pelo controle sanitário da produção e consumo de medicamentos no País, não incluiu novas indicações terapêuticas nas respectivas bulas.

Meses depois de emitir nota em que não recomenda uso de cloroquina ou hidroxicloroquina para casos de novo coronavírus, a agência reforçou, na semana passada, a falta de evidências científicas também sobre a ivermectina.

Do ponto de vista da Infectologia, não são medicamentos que valem a pena [o risco de ser administrados]. A hidroxicloroquina, vários estudos já mostraram os potenciais efeitos tóxicos dela, já foi suspensa da maioria dos ensaios clínicos. A ivermectina não tem nem estudos em humanos, o que nós temos são estudos in vitro, ou seja, em laboratório, no qual foi colocado doses humanamente nunca testadas”, afirma a médica infectologista Mariana Croda, médica da Faculdade de Medicina da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul).

A iniciativa do “kit prevenção” foi anunciada pelo prefeito Marquinhos Trad (PSD) após encontro com grupo de médicos que defendem a administração dos medicamentos. O movimento não enfrentou resistências no CRM-MS. Pelo contrário, ganhou apoio do conselho, que, em nota, reforçou a “autonomia” do médico para prescrever o que avaliar mais apropriado.

Mariana Croda, médica infectologista da Faculdade de Medicina da UFMS (Foto: Edemir Rodrigues/Governo de MS)
Mariana Croda, médica infectologista da Faculdade de Medicina da UFMS (Foto: Edemir Rodrigues/Governo de MS)

A posição do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) é distinta da breve manifestação do CRM-MS. Também em nota, a entidade paulista afirma que “pela falta de evidências, [...] o médico não pode divulgar o tratamento com tais medicamentos como eficaz”.

A entidade vai ainda mais longe e refuta “a divulgação e prescrição de medicamentos/protocolos informais e sem comprovação científica relevante, por meio de canais públicos, como redes sociais e imprensa”. Para o Cremesp, tal prática pode configurar infração ao Código de Ética Médica, induzir à automedicação e desencorajar a população a manter as medidas não farmacológica de proteção, como o isolamento social, uso de máscaras e higiene das mãos.

Off label - Também professor da UFMS e da Escola de Saúde Pública de Yale, nos Estados Unidos, o médico infectologista Julio Henrique Croda defende que o poder público não deve adotar prescrições “off label” (indicações fora da bula) como um programa de Saúde.

Croda ainda acredita ser difícil uma punição ou sanção de órgãos reguladores à iniciativa da prefeitura “quando o próprio CRM-MS apoia uma iniciativa absurda desta e a prefeitura se respalda nisso”.

Julio Henrique Croda, médico infectologista da UFMS e da Escola de Saúde Pública de Yale (Foto: Saul Schramm/Governo de MS)
Julio Henrique Croda, médico infectologista da UFMS e da Escola de Saúde Pública de Yale (Foto: Saul Schramm/Governo de MS)

Em nota, o CRF-MS (Conselho Regional de Farmácia) ressalta outro risco, o do desabastecimento dos estoques das drogarias “devido a divulgação inadequada ou não embasados (sic) tecnicamente para tal objetivo”.

Mariana Croda aponta para o perigo de maior desrespeito ao isolamento social de parcela da população que confiar na eficácia do “kit prevenção”.

“A questão é o que está por trás dessa mensagem, ou seja, a população tomar, se sentir mais forte em relação a pegar a doença e desenvolver sintomas graves, e se expor de maneira inadequada. A comunicação que a população está sentindo é essa: terei o kit covid e poderei me expor. É arriscado, é perverso um governo aceitar medidas como essa, e muito mais arriscado médicos defenderem algo que não é comprovado pela ciência”, destaca.

Além de ivermectina e hidroxicloroquina, o kit prevenção da prefeitura terá azitromicina, zinco, vitamina D e potássio. Segundo o prefeito Marquinhos Trad, o coquetel ficará disponível para pacientes com receita médica.

Em nota à redação, a Secretaria Municipal de Saúde informou que "o processo para a aquisição dos medicamentos está em andamento. A partir da chegada dos mesmos será restruturada a "Nota Técnica" normatizando a dispensação (sic). A previsão inicial das empresas era de 10 dias".

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