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Capital

“Sobreviver a essa bomba” é o desafio de quem perdeu mãe, tia e avó para covid

Ana Fátima, Rosângela e Rodolfina morreram em diferença de período menor do que um mês

Aletheya Alves | 15/01/2021 16:45
Rosângela, Rodolfina e Ana Fátima morreram de covid-19 entre 2020 e 2021. (Foto: Arquivo Pessoal)
Rosângela, Rodolfina e Ana Fátima morreram de covid-19 entre 2020 e 2021. (Foto: Arquivo Pessoal)

“A gente está tentando sobreviver a essa bomba na família”. Palavras de Odilon Duque Alves, de 35 anos, tentam resumir a dor ao perder mãe, tia e avó para o coronavírus. Ana Fátima, Rosângela e Rodolfina morreram em período menor do que um mês entre dezembro e janeiro.

Tentando entender todas as mudanças duras que aconteceram desde o dia 18 de dezembro, quando a mãe Ana Fátima Benites Duque Alves, de 66 anos, faleceu, Odilon conta sobre o que tem mantido as bases mais firmes: relembrar a felicidade e união da família. “Essa dor, esse vazio, eu achava que não, mas vai aumentando. Piorando com o passar dos dias”, conta.

Depois de Ana Fátima, a avó Rodolfina Benites Duque, de 87 anos, também não resistiu à doença em dezembro. Poucos dias depois, já em janeiro, Rosângela Benites Duque Nascimento, a tia Coca, de 65 anos, se foi. As três tinham hipertensão e obesidade.

União e família são as memórias mais fortes de Odilon. (Foto: Arquivo Pessoal)
União e família são as memórias mais fortes de Odilon. (Foto: Arquivo Pessoal)

“Isoladas do mundo” durante a pandemia, como Odilon relata, as três eram sinônimo de união e as mortes tão seguidas e recentes ainda são processo a ser compreendido. “A gente tinha uma ideia da felicidade, do privilégio, da bênção, por toda essa construção de família, mas a gente tem uma percepção absurda, uma forma de passar por isso quando perde”, explica sobre o sentimento.

As três moravam na região da Vila Carvalho, a avó Rodolfina com a Coca e Ana Fátima com o marido, todas muito próximas. De acordo com Odilon, durante os últimos dias antes da internação em dezembro, Rodolfina e Coca se mudaram provisoriamente para a casa de Ana, ainda mais reunidas.

Relato de Odilon é ilustrado em fotos das três sempre reunidas. (Foto: Arquivo Pessoal)
Relato de Odilon é ilustrado em fotos das três sempre reunidas. (Foto: Arquivo Pessoal)

Além das irmãs e mãe, outras três pessoas da família foram diagnosticadas com a doença, enquanto Odilon e a esposa tiveram os testes negativos. “Meu pai teve sintomas e comprometimento do pulmão, mas não fez diagnóstico pois ficou com minha mãe o tempo todo”, disse.

Marido, Odilon Dias Alves, de 67 anos, ficou no hospital ao lado de Ana Fátima até o último momento possível, “os médicos não queriam deixar. Ele repetia “eu fico com ela, durmo com ela há mais de 40 anos, não é hoje que vou deixar”. Ele encarou a covid na época”, o filho explica. Os dois só se separaram quando a realidade não mais permitiu.

“Privilégio” - Em 2020, Ana Fátima se tornou avó. Apaixonada pela neta, a artesã entoava “Garota de Ipanema” toda vez que Bruna chegava por perto, de acordo com Patrícia Oliveira Borges, de 34 anos, esposa de Odilon. “Minha sogra era muito alto astral, de bem com a vida, nunca reclamava de nada. Ela era muito falante, gostava de falar alto, ela enchia a casa”, diz.

Ana Fátima se tornou avó em 2020. (Foto: Arquivo Pessoal)
Ana Fátima se tornou avó em 2020. (Foto: Arquivo Pessoal)

Uma “mãezona”, a sogra era vista como alguém que não deixava o amor para depois, “no dia a dia ela expressava o amor dela”, Patrícia explica. Exemplificando a parceria presente no cotidiano, Odilon conta que quando passou na UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) para o curso de medicina veterinária, raspou o cabelo e a mãe não ficou só olhando, cortou também.

Ela não era só uma parceira minha, mas parceira dos amigos e de toda a família. Ela não queria, como meu irmão faleceu muito cedo, criar um filho egoísta. Ela mostrava empatia, não era apegada às coisas materiais. Era fera demais, Odilon diz.

“Apaixonada pela vida”, Ana Fátima sofreu com os impedimentos da pandemia desde o início, de acordo com o filho. “Ela gostava de receber pessoas e com a pandemia acabou”, diz. Os planos de viagem foram postergados e o sonho de aproveitar novos cenários com a neta acabaram ficando no imaginário.

“Ela era uma mãezona” - Tia Coca, Rosângela não teve filhos, mas se tornou mãe dos sobrinhos. Ao lado de seis irmãos, Coca tinha até evento especial, de acordo com Odilon, “tinha o bobó de galinha da tia Coca, a galera ficava na expectativa porque juntava todo mundo. Era uma reunião, uma alegria muito grande as três”.

Mãe de todos, a avó Rodolfina é lembrada com alegria pelo neto. “Minha avó é da escola de samba da Vila Carvalho. Meu avô, Felipe Duque, é fundador. A vó adorava ir na quadra da escola de samba”, diz. Além dessas cenas registradas na memória, Odilon conta que as reuniões em família também são destaque, ainda pensando no vazio deixado pelas três.

As três caminhando em praia durante férias. (Foto: Arquivo Pessoal)
As três caminhando em praia durante férias. (Foto: Arquivo Pessoal)

“Minha nossa, como que era um negócio que preenchia todos os nossos espaços, como era um negócio que enchia o coração. A gente tenta se apegar porque não entende como uma bomba dessa cai, pessoas boas tomando os devidos cuidados, respeitando a doença”, diz.

Hoje, Odilon diz pensar sobre a necessidade da empatia enquanto respeito às medidas necessárias para controle do coronavírus. Empatia ensinada pela mãe, “digo empatia no sentido de se cuidar e continuar tomando os cuidados”.

Continuidade e coronavírus - Sobre tentar seguir a vida, Odilon diz que o primeiro passo tem sido tentar absorver tudo. “Quando você vai absorvendo o falecimento de uma pessoa, minha mãe faleceu primeiro, uma dor tremenda. Logo depois foi minha avó, você vai tentando se organizar. Depois veio minha tia e todo o processo de burocracia após falecimento, essas coisas, é dolorido. Hoje é o que a gente fala, a gente tá sobrevivendo”.

Levando no presente os ensinamentos deixados pela mãe, Odilon diz que tenta tomar a fé como base. “Minha mãe era muito religiosa e passou isso para nós, é aquela história, a gente acredita que Deus sabe para quem ele dá o fardo. A gente é privilegiado por ter convivido com ela por todos esses anos e por ter passado esses ensinamentos de amor, empatia e fé”.

Ana Fátima completou 66 anos em novembro de 2020. (Foto: Arquivo Pessoal)
Ana Fátima completou 66 anos em novembro de 2020. (Foto: Arquivo Pessoal)

Ainda pensando na mãe, Odilon diz que o coronavírus é sinônimo de dor, “é uma doença que desafia enquanto sociedade porque ela pede da gente uma empatia pelo outro muito grande”. Outro ponto levantado é a dor ao não poder cuidar de quem ama, “a gente não pode cuidar de quem a gente gosta da forma que a pessoa merece porque tem que ficar isolada. Você vê um ente doente e ao mesmo tempo não pode estar lá grudado”, relata.

Prima de Ana Fátima, Cléa Maria Borges in Boscolo Bragadin, de 70 anos, conta que ao estar fora do Brasil enquanto integrantes da família se vão, a dor se torna desejo de não querer acreditar.

“É muito difícil, perturbador e assustador. É muito difícil estar longe da família, era para eu ter ido mas a pandemia me impediu”, diz. Completando sobre as três, Cléa comenta que Ana, Coca e Rodolfina eram “a coisa mais linda de ver, a união das três, era uma coisa só”.

Memórias que ficam, de acordo com Odilon e Cléa, são do amor emanado pelas três. (Foto: Arquivo Pessoal)
Memórias que ficam, de acordo com Odilon e Cléa, são do amor emanado pelas três. (Foto: Arquivo Pessoal)


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