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Capital

“Universidade pública é para rico”: elitização tem debate sobre cotas e cobrança

“Se parar para pagar faculdade, não vou pagar aluguel, não vou comer”, diz estudante

Aline dos Santos | 05/08/2020 13:12
Suelen durante estágio em hospital para curso de Fisioterapia: hoje ela nao pode estudar. (Foto: Arquivo Pessoal)
Suelen durante estágio em hospital para curso de Fisioterapia: hoje ela nao pode estudar. (Foto: Arquivo Pessoal)

“Universidade pública é para filho de rico, porque filho de pobre precisa trabalhar”. A certeza de Suelen Araújo, 37 anos, sobre o lugar delimitado para cada um no ensino superior, vem de experiência pessoal. Ela queria cursar Fisioterapia, mas a graduação na universidade pública é de dia, no mesmo horário em que precisava trabalhar.

Para prosseguir no ensino, Suelen conseguiu financiamento do Fies (Fundo de Financiamento Estudantil) em instituição privada que oferta o curso de Fisioterapia no período noturno. O ingresso foi em 2013 e três anos depois se viu enredada num jogo de empurra cujo resultado prático, neste agosto de 2020, é que não pode estudar. Ela estava na reta final da graduação.

Em 2016, houve atraso no aditamento do financiamento, mas quando a situação se regularizou a acadêmica fez cadastro e supôs que a questão estaria resolvida. “Mas não aparecia nada no meu portal, era como se estivesse devendo. Liguei no Fies e falaram que era problema da universidade. Na universidade, me falaram que um malote foi extraviado. Ficou um jogo de empurra”, conta Suelen.

Ela levou a questão para a Justiça, mas segue fora da sala de aula e com duas cobranças. Uma é da universidade e a outra é do Fies, que já começou a cobrar parcela de cerca de R$ 300 como se ela tivesse concluído o curso.

“Era para estar formada desde 2017. Mas estou sem perspectiva. Tenho uma filha e moro de aluguel. Se parar para pagar faculdade, não vou pagar aluguel, não vou comer”, afirma Suelen, que trabalha como gerente administrativa.

A dura jornada do ensino superior exemplifica as dificuldades de acesso dos mais pobres ao diploma da graduação. Neste cenário, quem sempre estudou no ensino público acaba sendo obrigado a migrar para o ensino particular e deixar a conta do Fies para depois de formado.

Por outro lado, quem vem do ensino privado tem mais possibilidade de não pagar pela faculdade, diante da melhor formação e disponibilidade de horário por não precisar trabalhar.

A balança começou a ser equilibrada com sistema de cotas, que define destinação de vagas para estudantes de escolas públicas e também para pretos, pardos ou indígena.

Mas a questão levanta “soluções” que passam por cobrança de mensalidade, melhoria do ensino básico à expansão das politicas de cotas. Todas, obviamente, com sua cota de polêmica e o costumeiro embate entre direita e esquerda.

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Projeto para mudar Constituição vê na cobrança de mensalidade o caminho para mais pobres chegarem à sala de aula. (Foto: Kísie Ainoã)

“Quem pode paga” 

Tendo como linha mestra o conceito de “quem pode paga e quem não pode não paga”, o deputado federal Roberto Sebastião Peternelli Junior (PSL-SP), o General Peternelli, defende mudança na Constituição para cobrança de mensalidade em instituição pública de ensino superior.

“Estatisticamente, por ter tido melhores escolas, acabam ingressando nas universidades públicas mais pessoas da classe média e alta. Dentro do aspecto de distribuição de renda, me parece muito mais válido que essas pessoas que têm recursos possam pagar. Todos nós, quer seja de direita ou de esquerda, governo ou oposição, temos que combater a desigualdade”, afirma o deputado em entrevista ao Campo Grande News.

O parlamentar, autor da PEC 206/19 (Proposta de Emenda à Constituição), afirma que há um modelo em Taubaté (MG), onde a instituição  é autarquia municipal e tem bolsas para quem não pode pagar.

 “Há muitos anos eu vi isso e acho válido. Passa pela análise de uma comissão de alunos, assistente social e professores, com resultado publicado na internet para dar transparência. A pessoa humilde não paga nada, tem bolsa de 100%”, afirma.

Para quem pode pagar, o valor máximo de mensalidade seria a média das particulares. Enquanto o mínimo seria a metade do valor médio.

“Quando você aborda isso da elitização, determinadas pessoas, em especial a esquerda, acham que não deve cobrar, mas acham que o rico deve pagar mais. Isso, no meu entender, deveria ser realizado em todos os níveis, não só com o Imposto de Renda”, diz o deputado federal.

Estudante durante avaliação em banca para validar vaga por cota racial. (Foto: Arquivo)
Estudante durante avaliação em banca para validar vaga por cota racial. (Foto: Arquivo)

Ampliação da política de cotas 

Professora da Faculdade de Educação, da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), Mariuza Guimarães é a favor do aumento de políticas públicas e contra a cobrança de mensalidade.

“Somos contrários a essa questão de pagamento de mensalidade nas instituições públicas. Desde 1930 os intelectuais brasileiros fazem a defesa de ensino público gratuito, de qualidade e para todos. Temos que aperfeiçoar os processos de cotas nas universidades para alunos de escolas públicas e alunos historicamente vulnerabilizados: negros, indígenas, quilombolas. As condições de desigualdade criadas pelo capitalismo não favorecem os jovens da classe trabalhadoras se não tiver estratégias diferentes”, afirma Mariuza.

A pesquisadora vê a cobrança de mensalidade em instituição pública como retrocesso e volta a 1987, antes da “Constituição  Cidadã”.  Naquele ano, ela ingressou no curso de Pedagogia da UFMS, onde quem não poderia pagar pela mensalidade concorria à bolsa.  “Tinha uma estrutura, com equipe de assistente social, psicólogo, visita domiciliar”, diz.

Constituição de 1988 estabeceu ensino superior gratuito, mas o acesso à instituição pública segue em desequilíbrio. (Foto: Arquivo)
Constituição de 1988 estabeceu ensino superior gratuito, mas o acesso à instituição pública segue em desequilíbrio. (Foto: Arquivo)

O lugar do pobre 

Professor do IFMS (Instituto Federal de Mato Grosso do Sul) e mestre em Educação, Paulo Henrique Azuaga Braga propõe um exercício de imaginação. Caso as aulas presenciais não estivessem suspensas, bastaria entrar na sala de curso de Medicina de instituição pública e perguntar quantos tem carro no pátio da universidade.  “A resposta seria 95%”.

Na mesma sala, no máximo 10% seria de negros, apesar de 37% da população em MS ser negra. Neste cenário ainda em desequilibro, ele destaca que politicas públicas adotadas resultaram na ascensão dos mais pobres ao ensino superior, por meio de mecanismo como cotas e Prouni (Programa Universidade para Todos).

“Hoje, temos a tentativa de desconstruir isso. Com a proposta de o ensino público passar a ser pago, o aluno de baixa renda vai receber um voucher para estudar em universidade. Quem tiver condições financeiras vai entrar. Será a elitização do ensino”, avalia.

Segundo Paulo, é preciso investir na melhoria do ensino básico, na formação do aluno, além de melhor remuneração para os professores.

Outro desafio é vencer a barreira, construída historicamente, de que o ensino superior pertence à classe alta da sociedade brasileira. Que vê o filho da empregada doméstica ou do motorista na universidade com o mesmo assombro de quando se deparou com a classe C no avião.


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