Patrões recorrem até a prêmios por assiduidade para evitar sumiço do serviço
Com milhares de vagas abertas, mercado enfrenta também faltas que comprometem até serviços essenciais
No Núcleo Indubrasil, que ocupa 200 hectares em Campo Grande e reúne 40 grandes empresas, se espalham placas de “contrata-se”. Mas, na manhã da última sexta-feira (dia 5), somente Roseana de Carvalho, 33 anos, levava o currículo nas mãos em busca de uma oportunidade.
RESUMO
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A escassez de mão de obra tem afetado diversos setores em Campo Grande, desde o comércio até a coleta de lixo. O fenômeno é marcado pela preferência dos trabalhadores por atividades autônomas, como motoristas de aplicativo e entregadores, em busca de flexibilidade e ausência de hierarquia formal. O comércio local registra duas mil vagas em aberto, enquanto a coleta de lixo enfrenta problemas operacionais devido ao alto índice de faltas. Para contornar a situação, empresas têm adotado estratégias como contratação de aposentados, oferta de benefícios adicionais e programas de capacitação, buscando atrair e reter funcionários no mercado formal.
Em frente a uma fábrica que oferece vaga para costureira, ela conta que era faxineira e está há um mês à procura de emprego. A expectativa é fazer o curso oferecido pela contratante para ganhar novos aprendizados e melhorar a renda, além de ter as garantias de um emprego com carteira assinada.
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O movimento de Roseana, de ir em busca de um emprego CLT (Consolidação das Leis de Trabalho), se mostra cada vez mais raro em Campo Grande. Pois a busca por ser dono do próprio tempo, não ter patrão e não bater ponto tem provocado a migração para o trabalho autônomo.
A mudança é sentida por vários setores, como comércio, construção civil e coleta de lixo, que enfrentam essa fuga dos trabalhadores.
"Estamos com mais de duas mil vagas"
Com duas mil vagas para preencher na Capital, o comércio enfrenta o apagão de funcionários mirando na mão de obra dos aposentados, da faixa etária dos “60 mais” e com a oferta de benefícios.
“Tem casos de lojas e estabelecimentos comerciais que reduziram operações devido à escassez de mão de obra, especialmente no setor de varejo e supermercados. Estamos com mais de duas mil vagas abertas desde o início do ano. Temos buscado trazer aposentados e 60 mais para suprir a necessidade de trabalhadores”, afirma o presidente da CDL (Câmara de Dirigentes Lojistas), Adelaido Vila.
Um termômetro da rotatividade no varejo foi o último mês de setembro, quando as demissões voluntárias atingiram recorde de 38,5%.
“Essa crise é agravada pelas características da Geração Z, nascidos entre 1997 e 2012, que prioriza flexibilidade, equilíbrio entre vida pessoal e profissional, e propósito no trabalho, optando por empregos informais em vez de vagas fixas no comércio tradicional”, avalia o presidente da CDL.
De acordo com Adelaido, o varejo paga, em média, de 20% a 25% a mais que o salário mínimo (R$ 1.518) para o início de carreira.
Vice-presidente da ACICG (Associação Comercial de Campo Grande), Omar Aukar reforça a dificuldade de encontrar profissional com perfil adequado. “Especialmente quando falamos em atendimento ao cliente, comprometimento e disposição para aprender. Há falta de pessoas preparadas e interessadas em construir carreira no comércio”.
Sintomas dessa realidade é que muitos pedem demissão após poucos dias de trabalho. “Muitos profissionais começam, mas não permanecem porque percebem que a rotina do varejo exige disciplina, ritmo e foco no atendimento, e nem todos estão preparados para isso. O que aumenta a rotatividade e gera custos significativos para o comerciante, que investe tempo e treinamento”.
A faixa etária mais jovem tem optado pelo trabalho autônomo, como motorista de aplicativo ou motoentregador. “Mas é importante lembrar que o emprego formal ainda garante estabilidade, desenvolvimento e uma série de direitos que o trabalho por aplicativo não assegura”, diz o vice-presidente da ACICG.
Para “fidelizar” os funcionários, os empresários têm recorrido a bônus de assiduidade, alimentação no local, escalas mais equilibradas, oportunidades de capacitação e programas internos de formação. “Essa é uma tendência que deve se intensificar, porque investir na formação e preparo dos colaboradores é uma necessidade”, afirma Omar.
“Você marca entrevista com 10, mas vêm 3”
O empresário Paulo Mattos Pinheiro destaca que a falta de funcionários é generalizada, mas a função mais difícil de preencher é a de vendedor. A dificuldade já começa na seleção. “Você marca com dez pessoas, mas na entrevista vêm três. Depois, dos três que você marcou para o teste vem apenas um”.
O setor sente os impactos geracionais, com os jovens desistindo mais facilmente do trabalho. “É difícil para o pessoal mais novo se adaptar às empresas. Diante de qualquer dificuldade, já não querem ficar. Apesar de procurarmos tratar da melhor maneira possível. A falta de mão de obra reduz a capacidade de crescimento das empesas e acaba atrapalhando a arrecadação do governo”, afirma Paulo.
O setor oferece premiações para manter o quadro de funcionários. “Vai mais de um ano para formar um vendedor. Depois que você treinou, não quer perder o funcionário. Então, acaba entrando num acordo e paga um salário melhor”.
Bater ponto no fim de semana espanta candidatos
Presidente da Fecomércio (Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo de Mato Grosso do Sul), Edison Araújo aponta uma nova realidade, como a preferência de avançar nos estudos antes de buscar um emprego e a resistência em preencher vaga que exija trabalho ao fim de semana.
“O comércio, que sempre foi uma das principais portas de entrada para o primeiro emprego, enfrenta hoje uma nova realidade: muitos candidatos evitam vagas que exigem trabalho aos finais de semana ou feriados. Na entrevista, antes mesmo de falar sobre competências, muitos já perguntam se precisarão trabalhar aos sábados ou domingos”.
Segundo Edison, os desafios para contratar passam por diversos fatores: mudança nas expectativas dos jovens, pouca busca por qualificação, falta de comprometimento inicial, dificuldade das empresas em formar e integrar equipes, além da necessidade de oferecer benefícios compatíveis com o que o trabalhador busca. “É um cenário complexo, mas que pode ser enfrentado com investimento em qualificação, melhoria das condições de trabalho e maior valorização das pessoas”.
Neste cenário, ele destaca que o Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial) é referência na formação profissional e qualificação para o primeiro emprego, enquanto o Sesc (Serviço Social do Comércio) oferece benefícios sociais e de bem-estar aos trabalhadores do comércio, como alimentação subsidiada, atividades de lazer, cultura, esporte e assistência.
A força de trabalho dos 70+
O Grupo Pereira, dono do Comper e do Fort Atacadista, destaca os resultados da contratação de funcionários com mais de 50 anos, como menor número de faltas e depoimentos elogiosos dos clientes.
De acordo com Simone Cotta, gerente de ESG (pilares ambiental, social e governança) e Comunicação Corporativa, a rede varejista foi a primeira do Brasil certificada como "Age Friendly" por contratação e programas 50+.
“No total, somos 23 mil funcionários, sendo 17% na faixa etária 50+. Todo ano, em maio, fazemos uma semana de contratação exclusiva para esse grupo. Também temos capacitação e treinamentos específicos na nossa Universidade Corporativa”, afirma Simone.
Edmar Ferreira Feitosa, 75 anos, é operadora de caixa no Comper desde 15 de maio de 2023. A contratação foi rápida: fez a entrevista de emprego e poucos dias depois já estava com a vaga. Ela conta que adora levantar de manhã e ir trabalhar.
“Eu amo. Não gosto de ficar em casa e também não falto. Sempre ganho prêmio por assiduidade. Trabalho desde os 14 anos”, diz Edmar. Ao longo do tempo, foi funcionária de lojas no Centro, shopping e ficou 23 anos no Detran/MS (Departamento Estadual de Trânsito).
Além do retorno financeiro, ela recebe reconhecimento dos clientes. “É elogio direto. Recebo parabéns, é gratificante”.
Aos 71 anos, Franklin Nascimento Coelho viu a saúde melhorar depois de voltar ao mercado de trabalho. Operador de caixa, ele complementa a renda familiar e espanta o tédio. “Isso de ficar em casa, olhando para o teto, não ‘vira’. Você tem que sair, trabalhar, conhecer gente. Melhorou muito a minha saúde. É uma iniciativa louvável contratar pessoas com mais idade”.
Franklin já trabalhou na área de seguro habitacional e foi perito de seguradora. Depois, chegou a vender 300 cachorros-quentes por dia. Quando veio o declínio na atividade, migrou para o transporte escolar e motorista de aplicativo.
Gargalo vai do ajudante ao mestre de obras
O Sinduscon-MS (Sindicato Intermunicipal da Indústria da Construção) aponta que o setor também tem enfrentado desafios para contratar.
“É importante destacar que a falta de trabalhadores para atender a demanda atinge não somente as funções que exigem maior qualificação, como mestre de obras, pedreiro, carpinteiro, mas também nas de menor exigência em qualificação, como as funções mais básicas de entrada no setor, como servente e ajudante. Hoje já temos empresas do setor que estão cancelando ou postergando seus investimentos pela limitação de capacidade produtiva, devido à falta de mão de obra”, informa nota enviada pelo sindicato ao Campo Grande News.
Para preencher os postos de trabalho, o Sinduscon lidera os projetos “Construindo Talentos”, que oferece qualificação gratuita. A ação mais recente foi batizada de “Elas Constroem”, que oferece, em parceria com o Senai e CBIC (Câmara Brasileira da Indústria da Construção), cursos para mulheres.
O projeto teve 40 alunas, divididas nos cursos para assentar revestimento cerâmico, pintura imobiliária e operadora de Bobcat (minicarregadeira).
Na rodagem: o trabalho flexível, mas perigoso
Flavio de Almeida Lopes, 38 anos, disse adeus ao emprego de açougueiro para ser motoentregador. O motivo da mudança está na ponta da língua.
“Pela possibilidade de maior faturamento e flexibilidade de horário”, conta. Agora, consegue se organizar entre a “rodagem”, o trabalho de motoentregador, estudo bíblico de manhã, rotina da casa, buscar a filha na escola e serviços esporádicos de churrasqueiro. “Mas não significa que é fácil”, diz Flavio.
Matheus Gonzalez Brito, 27 anos, trabalhava em call center, com remuneração média de R$ 2.500. “Mas optei pelo ramo autônomo. No começo, era uma renda extra. Porem, se tornou a principal quando vi que trabalharia menos e ganharia muito mais. Optei por sair do meu emprego registrado e trabalhar com entregas e transporte de passageiros. Mas também tem seus malefícios. Muito tempo no sol, não tem local para descanso, não tem local para esquentar comida, perigo constante de acidente”.
Ele conta que consegue ter acesso a benefícios do mercado formal de trabalho porque é MEI (Microempreendedor Individual). “As plataformas também oferecem benefícios. Em caso de acidente, você recebe um proporcional aos últimos 15, 30 dias trabalhados. E os direitos trabalhistas eu consigo através do MEI”.
Eder da Silva Farias, 43 anos, relata que está vivendo um dos piores cenários para quem é motoentregador. Sofreu acidente de trânsito, fraturou uma perna e serão até 40 dias sem poder pisar no chão.
“Eu trabalhava de estoquista num pet shop e a minha renda chegava a R$ 2.400. Resolvi abandonar o CLT para me arriscar no autônomo, ser o meu próprio patrão. Chego a fazer R$ 1.500 por semana. Só que não tem nada que garante o amanhã em caso de acidente”.
Rodrigo Urbano, de 33 anos, era radiologista, passou para motoentregador e agora tem um aplicativo de entregas. “Em dois anos nas ruas, já conquistei três vezes mais do que conseguia. Estou inaugurando um aplicativo, algo que nunca imaginei que iria conquistar”, afirma Rodrigo.
Coleta do lixo em risco por faltas em massa
Responsável pela gestão dos resíduos sólidos em Campo Grande, a CG Solurb tem 20 vagas abertas para a função de coletor. Contudo, além do déficit, enfrenta dificuldades operacionais diante da falta massiva de funcionários.
O problema acontece depois de pagamentos. No sábado (dia 6), conforme apurado pela reportagem, foram 62 faltas. O salário tinha sido liberado na sexta-feira. Após o depósito do 13º salário, foram quase 100 faltosos em dois dias.
“Ausências elevadas têm impacto imediato na coleta, especialmente em dia com maior geração de resíduos, podendo afetar diretamente a rotina de muitos moradores. A empresa mantém uma reserva técnica de aproximadamente 20% do quadro de coletores para absorver ausências pontuais. Contudo, quando o número de faltas ultrapassa esse limite, a prestação do serviço pode ser comprometida”, aponta a empresa.
Para reorganizar a operação de coleta de lixo e cumprir o contrato de concessão com o poder público, a CG Solurb autorizou jornada extraordinária para recompor equipes, ampliou o processo de contratação e reforçou ações de engajamento.
Outra medida foi adotar benefícios adicionais, como plano de saúde e odontológico. A experiência será por seis meses, mas com potencial de se tornar uma política permanente para reduzir o absenteísmo.
“A partir de dezembro, o sindicato passará a disponibilizar, em caráter experimental, um plano de assistência à saúde e um plano odontológico aos trabalhadores, pelo período inicial de seis meses. A iniciativa reforça o compromisso conjunto com o bem-estar da categoria e busca contribuir para a redução do absenteísmo”, informa a concessionária.
A empresa já oferece cesta básica para trabalhadores com alta assiduidade, vale-alimentação e premiação anual de assiduidade.
A CG Solurb conta com aproximadamente mil trabalhadores, que atuam na coleta de resíduos sólidos, varrição, operação dos ecopontos, administração e atividades de apoio.
Pandemia acelerou novos modelos de trabalho

Tragédia na saúde, a pandemia de covid, que começou em 2020 e terminou em 2023, também foi decisiva para acelerar novos modelos de trabalho. A restrição na mobilidade abriu as portas para home office, teletrabalho e serviços digitais.
“Além disso, formas alternativas de geração de renda - motoristas de aplicativo, entregadores e outras atividades mediadas por plataformas - tornaram-se atrativas por oferecerem autonomia, flexibilidade e remunerações competitivas. Essa mudança impactou setores tradicionais. Na construção civil, por exemplo, muitos filhos de pedreiros não desejam seguir a profissão, pois hoje existem caminhos menos desgastantes fisicamente e com retornos semelhantes”, afirma Angela Frata, que é economista, administradora e coordenadora dos cursos de Administração, Ciências Contábeis e Gestão de Recursos Humanos da Estácio em Campo Grande.
De acordo com Angela, há pesquisadores que relacionam a dedicação ao estudo com o retorno percebido no mercado. “Após a pandemia, muitos revisitaram a relação entre trabalho, tempo e qualidade de vida. Nem todo mundo deseja passar a vida em atividades pesadas em troca de consumo. A construção de riqueza exige disciplina e esforço constantes, e parte das novas gerações não compartilha mais essa lógica tradicional”, destaca a professora.
Um exemplo está no campo. O agronegócio destina salários altos para profissionais qualificados. “Contudo, muitos trabalhadores evitam ir para o interior, onde há isolamento, menos opções de lazer e distância dos centros urbanos”, diz Angela, que tem mestrado em agronegócio.
Outra realidade na Geração Z é a dificuldade em conseguir comprometimento dos colaboradores. “A geração atual não vê no trabalho algo construtivo, quer viver o dia, sem pensar muito no futuro”.
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