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Cidades

Para lideranças indígenas, Agricultura vai “engavetar” demarcações

Em uma das primeiras medidas de governo, presidente Jair Bolsonaro (PSL) transferiu delimitações das terras indígenas da Funai e do Ministério da Justiça para Ministério da Agricultura

Izabela Sanchez | 02/01/2019 12:58
Lindomar Terena, liderança em Mato Grosso do Sul (Foto: Arquivo/Campo Grande News)
Lindomar Terena, liderança em Mato Grosso do Sul (Foto: Arquivo/Campo Grande News)

“Se eu assumir, índio não terá mais um 1 cm de terra”, afirmou o presidente Jair Bolsonaro (PSL), antes de ganhar as eleições. Na avaliação de lideranças indígenas de Mato Grosso do Sul, a promessa já começou a ser cumprida. Isso porque uma das primeiras medidas do novo governo foi transferir da Funai (Fundação Nacional do Índio) e do Ministério da Justiça para o Ministério da Agricultura, a responsabilidade por demarcar terras indígenas e quilombolas brasileiras.

A nova regra, que altera a legislação, foi realizada por medida provisória, divulgada na noite desta terça-feira (1º) em edição extra do Diário Oficial da União. À frente da pasta está a deputada sul-mato-grossense Tereza Cristina (DEM-MS), nova titular do Mapa (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento).

Uma das lideranças mais importantes entre os Terena, membro do conselho da etnia que já visitou a ONU (Organização das Nações Unidas) em Nova York, Estados Unidos, para denunciar genocídio indígena em Mato Grosso do Sul, Lindomar Terena acredita que o Ministério da Agricultura “vai engavetar os processos de demarcação”.

“Olha, a tendência é que eles, agora que a questão passa pela mão da Tereza Cristina, tudo que seja relacionado à demarcação, que eles engavetem. Vai ficar no ar até que ponto ela vai segurar isso, porque a luta, a recuperação é feita aqui, pelas terras, a partir de uma comunidade, de buscar o território, visto que o governo não faz isso, a demarcação vai ser feita pela própria terra indígena”, opina.

Além disso, Lindomar declara que a mudança é “combustível no fogo” para o aumento de conflitos e “retomadas”, as ocupações de indígenas em propriedades rurais, chamadas pelas etnias de “auto demarcação”. “No Estado, nós temos grande número de retomadas, com essa situação, uma vez que o estado não garante, é jogar um combustível no fogo, aumenta os conflitos, aumenta a insegurança jurídica, porque os produtores vão ficar reféns disso, os povos se organizam e reclamam pela área”, destaca.

Índios levam corpo de Clodioudo Aguile Rodrigues dos Santos, 26 anos, assassinado em 2016 na retomada indígena na fazenda Yvu, em Caarapó (Foto: Helio de Freitas)
Índios levam corpo de Clodioudo Aguile Rodrigues dos Santos, 26 anos, assassinado em 2016 na retomada indígena na fazenda Yvu, em Caarapó (Foto: Helio de Freitas)

Insegurança jurídica e “golpe final na Funai” – O terena ainda pontua que a mudança nas regras, feita por medida provisória, não ajuda, também, os proprietários rurais, pois cria uma insegurança jurídica nos processos de demarcação.

“Essa questão da demarcação no país é lei, é garantido na constituição pelo artigo 231 e 232, agora para se mudar o rito de demarcação é preciso passar por uma mudança na Constituição. São medidas que não trazem segurança jurídica, tanto para aqueles que são oposição à demarcação quanto aos que querem. Mostra toda incapacidade de apresentarem uma solução para que se possa ter uma segurança jurídica, inclusive para que os produtores”, comenta.

“Golpe final”, diz a liderança sobre a situação da Funai. Ele afirma que a Fundação, que já estava enfraquecida, fica, agora, “inoperante”.

“A Funai já vinha sendo desmantelada ao longo de vários governos, cada ano vem caindo, vem caindo, e chega nesse momento ela vai se tornar inoperante, para nós povos indígenas é importantíssima, não faz o papel que deve ser feito, mas ainda assim continua sendo importante. É um golpe final”, declarou.

Incerteza para os Guarani e Kaiowá – Na região de Japorã, a 487 km de Campo Grande, vive Leila “Cunhã Guaracy”, na terra indígena Guarani e Kaiowá e Nhandeva Ivy Katu. Leila afirma que a partir de agora, fica a incerteza, em especial nas terras como onde vive, “retomadas”, ainda não demarcadas pela União.

Os indígenas ocupam a área total da terra indígena - 9.494 hectares -, correspondente à área de 14 fazendas. O território já passou por estudo antropológico, que confirmou a ocupação tradicional dos indígenas, e foi declarada como terra indígena pelo Ministério da Justiça, através da Portaria 1289/2005. Os indígenas aguardam a homologação pela Presidência da República, última etapa de todo o processo, que começou em 1982.

Comunidade guarani kaiowá e nhadeva Yvy Katu, em Japorã (Foto: Divulgação/Cimi)
Comunidade guarani kaiowá e nhadeva Yvy Katu, em Japorã (Foto: Divulgação/Cimi)

“Eu não sei como vai ser para a retomada, porque do jeito que eu vi eles fazendo o discurso, não vai ser fácil para gente. Eu espero que não aconteçam coisas muitos ruins. Essa é uma preocupação [mudança nas regras da demarcação] porque a demarcação passa primeiro pela mão da Funai, vai ser muito difícil porque a Funai foi retirada. Isso aconteceu porque sempre acusava a Funai de fazer a cabeça de indígena para fazer a retomada. Ninguém pode ensinar os indígena isso, é o nossos lugar que perdemos há muitos anos”, declarou.

"Só Deus e Nhanderu sabem”, afirmou. “Com certeza vai diminuir [demarcações] e muito. Vamos brigar sim, a gente não tem armamento pesado, mas temos nossa reza. Os kaiowá e guarani não quer fazer coisa mal nesse mundo. O rezador não quer fazer isso, a gente sempre pensa o que o Nhanderu pode fazer pra gente. Espero que esse novo presidente, que fala que crê em Deus, que Nhanderu mude o coração desse homem”, comenta.

Para a indígena, outra promessa de Bolsonaro pode dificultar a vida dos povos indígenas em todo Brasil, em especial, conta, em Mato Grosso do Sul. Trata-se da afirmação do presidente de rever a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, um dos processos mais emblemáticos do Brasil. Leila acredita que a revisão pode repercutir para as terras de Mato Grosso do Sul e “jogar” mais indígenas para as beiras de estradas.

“Nós estamos ferrados, porque ele falou que vai colocar o marco temporal, os guarani e kaiowás estão ferrados. E um monte de indígena, não só de Mato Grosso do Sul, vários indígenas e vários acampamentos vão ser massacrados. Não ter lugar fixo para morar, morar a beira do asfalto, é uma coisa triste, eu sou de Japorã, então quantas pessoas estão no arredor da cidade”, conta.

Bancada ruralista – Liderança da aldeia Buriti, em Dois Irmãos do Buriti, a 83 km de Campo Grande, e coordenador executivo da Apib (Articulação dos povos indígenas do Brasil), Alberto Terena declarou que a titular do Mapa “defende os interesses da bancada ruralista” e que, dessa forma, as demarcações vão ficar inviabilizadas.

“Olha eu digo para você que é um retrocesso porque é uma representação dos direitos dos povos indígenas vão parar na mão de uma defensora da bancada ruralista. Os nossos direitos têm que ser respeitados, principalmente em Mato Grosso do Sul, que temos essa situação que precisa ser resolvida. A gente percebe que esses interesses vão ficar de lado ou até mesmo alvo de retaliações. Vai haver um engavetamento, porque o que eles puderem fazer para que as nossas terras não sejam demarcadas, eles vão fazer”, pensa a liderança.

Para ele, os “interesses da bancada ruralista” começaram com a nomeação da ministra para a pasta. Ele lembra que a deputada fez parte da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) que investigou a Funai e o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).

“O interesse era tentar inviabilizar as terras e a desestruturação da Funai. Com a nomeação isso vai fortalecer cada vez mais. A gente espera que as instituições, que os órgãos competentes, direitos humanos, ministério público, venham somar com a gente nessa batalha. A própria fala de que não vai dar nenhum centímetro de terra está se confirmando ao levar a questão fundiária pra esse ministério”, declarou.

Índios Guarani e Kaiowá em Caarapó (Helio de Freitas)
Índios Guarani e Kaiowá em Caarapó (Helio de Freitas)

Interesses do agronegócio - O indígena defende “que nada veio de graça”, em especial os direitos garantidos pela Constituição Federal. “Nunca ninguém deu um cm de terra pra gente, nós tivemos que buscar esses direitos, a demarcação é uma luta, com mortes, prisões e tudo mais, e essas pessoas que estão na representação do nosso país estão olhando para o lado do interesse deles e menos para os direitos dos povos originários desse país. A gente vê uma situação muito ruim. Parece que há um único interesse: avançar com o agronegócio”.

Assim como Lindomar, Alberto acredita que os conflitos devem aumentar, “porque o nosso povo vai em busca daquilo que é direito”. “Nós vamos para cima. Isso é inquestionável”, afirmou. Ele afirma que o um governo que não garante o direito dos povos indígenas “não é um governo sério”.

“Eles estão tentando paralisar tudo, levando a questão territorial, mesmo que não seja extinta, só de levarem a questão fundiária para agricultura, imagina, entra em uma pasta onde a bandeira é outra, é ridículo, para um governo que se diz sério, é uma vergonha para um governo que quer começar com seriedade, eu acho que o diálogo é sempre importante. E aí quando os povos indígenas se levantam, é porque nós que somos selvagens, mas um governo que não quer reconhecer um direito do seu povo, não é um governo sério. É lamentável”, finaliza.

Situação fundiária em Mato Grosso do Sul - Mato Grosso do Sul tem 74 terras indígenas “sem providências”, ou seja, sem processos demarcatórios. Os dados são do relatório “Violência contra os povos indígenas no Brasil”, do Cimi (Conselho Indigenista e Missionário).

Além disso, o Estado ocupa o terceiro lugar no ranking de assassinatos de indígenas, liderança que ocupa nos últimos anos. O Cimi estima que ao menos uma liderança seja assassinada a cada ano, nos últimos 10 anos, em Mato Grosso do Sul. Outra questão que já ganhou repercussão internacional, além da violência e da morosidade na demarcação, é a fome dos indígenas em Mato Grosso do Sul, que já trouxe representantes de direitos humanos da comunidade internacional para o estado.

Apesar da mudança nas demarcações, a ministra ignorou o assunto, que não foi abordado por ela durante o discurso de posse nesta quarta-feira (2).

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