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Feminicídio e o cerceamento da liberdade feminina no Brasil

Por Lia Rodrigues Alcaraz (*) | 02/12/2025 09:17

O feminicídio, expressão mais extrema da violência de gênero, constitui hoje uma das maiores ameaças à autonomia e à vida das mulheres no Brasil. A cada novo caso divulgado, torna-se evidente como escolhas básicas, como terminar um relacionamento, caminhar num parque ou simplesmente existir no espaço público podem se transformar em riscos concretos. Os episódios recentes envolvendo Catarina Karsten, estuprada e assassinada por um rapaz que cruzou o caminho que ela fazia diariamente para ir à aula de natação em SC; Taynara Souza de Campos, brutalmente atropelada e arrastada pelo ex-namorado e que teve as pernas amputadas; o assassinato de duas mulheres por um colega de trabalho no CEFET (Centro Federal de Educação Tecnológica), no Rio de Janeiro; e ainda a tentativa de estupro de uma mulher em Campo Grande (MS), enquanto fazia sua caminhada matinal no Parque dos Poderes revelam um cenário alarmante de violência que se intensifica e limita profundamente o livre-arbítrio das mulheres.

Esses e tantos outros casos, que nem caberia citar todos aqui, demonstram que a violência contra a mulher não é um fenômeno isolado, tampouco restrito ao âmbito doméstico, embora muitas vezes ali tenha origem. No caso de Catarina Karsten, o feminicídio se inscreve na lógica do controle e da posse masculina, que se sente capaz de, além do abuso sexual, ceifar a vida como algo sem valia. Outro caso que se assemelha, por também colocar a vida da mulher nessa mesma insignificância, é a agressão sofrida por Taynara Souza de Campos, que resultou na amputação de suas pernas após ser arrastada pelo ex-companheiro, que enxerga o fim do relacionamento como uma afronta a ser “punida”. Esse episódio ilustra como a recusa feminina em permanecer em vínculos abusivos ou simplesmente exercer seu direito de ir e vir e de existir pode desencadear ataques de extrema crueldade. São episódios que escancaram a dificuldade, ainda presente em nossa sociedade, de aceitar a autonomia feminina como um direito inegociável.

A violência, no entanto, não se limita apenas à relação amorosa. O impedimento da vida ocorre de maneira descontrolada e fica evidenciado no caso do duplo assassinato de mulheres por um colega de trabalho no CEFET (Centro Federal de Educação Tecnológica) do Rio de Janeiro, que mostra como o feminicídio pode surgir também em ambientes que deveriam ser seguros, como o espaço profissional. A misoginia e o ódio direcionado às mulheres manifestam-se de formas que ultrapassam a esfera privada e revelam estruturas sociais que naturalizam a agressividade masculina. Da mesma forma, a tentativa de estupro ocorrida em Campo Grande, quando uma mulher foi atacada enquanto fazia sua caminhada às 5h da manhã no Parque dos Poderes, demonstra como o simples ato de ocupar a cidade, um direito básico, ainda é permeado por medo, vigilância constante e limitações autoimpostas pela insegurança.

Diante desse cenário, observa-se que o feminicídio e as ameaças à integridade física não apenas ceifam vidas, mas paralisam projetos, destroem famílias, deixam órfãos, desarticulam rotinas e roubam o livre-arbítrio das mulheres. Muitas deixam de sair sozinhas, evitam lugares, alteram horários ou se mantêm em relacionamentos abusivos por medo da reação violenta do agressor. A sociedade, ao não garantir segurança nem responsabilização eficaz dos agressores, reforça um ciclo de opressão em que o medo é utilizado como ferramenta de controle. Isso significa que a violência de gênero não produz somente vítimas fatais: produz, diariamente, vidas limitadas.

Portanto, enfrentar o feminicídio exige mais do que leis já existentes, como a Lei Maria da Penha e a tipificação específica do crime. É urgente fortalecer políticas públicas, ampliar investimentos em prevenção, educação, acolhimento e proteção efetiva. Significa também reconstruir narrativas sociais que ainda naturalizam o ciúme, a posse e a dominância masculina. Enquanto mulheres morrem por exercer sua liberdade ou perdem essa liberdade por medo de morrer, não há democracia plena nem sociedade justa. A luta contra o feminicídio, portanto, é uma luta pela vida, pela autonomia e pelo direito de existir sem medo.

(*) Lia Rodrigues Alcaraz é psicóloga formada pela UCDB (2011), especialista em orientação analítica (2015) e neuropsicóloga em formação (2024). Trabalha como psicóloga clínica na Cassems e em consultório.

 

Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.