Especialistas indicam pontos que podem comprometer eficiência da Rota Bioceânica
Limitações na transposição da Cordilheira, burocracia alfandegária e deficit de mão de obra são desafios
Enquanto avançam as obras da Rota Bioceânica — o corredor internacional que ligará o Brasil ao Chile, passando por Paraguai e Argentina — especialistas e empresários apontam desafios que precisam ser superados antes da inauguração das primeiras etapas da rota, prevista para o próximo ano. Entre os principais entraves está a inviabilidade no escoamento da soja pelas Cordilheiras dos Andes, onde a altitude chega até 4.200 metros e não é possível e nem permitido trafegar com veículos longos, como os biarticulados que serpenteiam por estradas brasileiras.
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Outros problemas incluem questões burocráticas, alfandegárias e a carência de mão de obra qualificada para atender às expectativas de crescimento do fluxo logístico, a partir da conclusão de algumas obras previstas para 2026. A avaliação é do pesquisador Eduardo Luís Casarotto, professor da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e membro da rede de universidades latino-americana (UniRila), ligada ao projeto da Rota Bioceânica.
Com cerca de 65% das obras concluídas, uma das principais estruturas em fase avançada é a ponte que ligará Porto Murtinho (MS) a Carmelo Peralta (Paraguai), financiada pela Itaipu Binacional. Casarotto frisa que é importante para o empreendimento como um todo que os entraves sejam superados antes mesmo da entrega das primeiras etapas do corredor internacional.

“Com exceção das pontes e alguma pavimentação, as estradas estão prontas, porque elas já existem. É só asfaltar e melhorar as condições.”
Dados do Ministério dos Transportes mostram o andamento dos serviços de manutenção e melhoria das rodovias federais — BR-267 e BR-060 — que farão parte do trajeto da Rota em Mato Grosso do Sul, entre Campo Grande e Porto Murtinho, as quais prometem facilitar o transporte de mercadorias e de pessoas, e promover o desenvolvimento regional, conforme informou o órgão ao Campo Grande News.
Além de obras para adequação do Porto Murtinho - Alto do Caracol e de acesso à nova ponte sobre o Rio Paraguai, regiões fronteiriças, o governo federal atua na contratação de empresa para conservação e recuperação da BR-267, cuja fase está com 8% de execução.

Transposição na Cordilheira dos Andes
Principal produto de exportação do Brasil, a soja dificilmente poderá ser escoada pela Cordilheira dos Andes sem que a engenharia encontre uma alternativa de contornar a montanha de gelo e neve. A travessia inclui altitudes extremas e curvas sinuosas, no trecho entre Salta (Argentina) e os portos de Antofagasta ou Iquique (Chile). Trata-se do trecho mais estratégico — e desafiador — da Rota Bioceânica para o acesso aos mercados asiáticos.
Segundo Casarotto, o escoamento da soja, ao menos no curto prazo, é inviável devido aos modelos de caminhões atualmente utilizados. O transporte do grão — que segue para o exterior majoritariamente pelo Porto de Paranaguá (PR) — é realizado por caminhões adaptados às estradas brasileiras, como rodotrens (nove eixos, até 74 toneladas) e bitrens (sete eixos, até 57 toneladas). Caminhões desse porte enfrentam severas dificuldades para trafegar em regiões montanhosas, por serem pesados e exigirem grande força, o que resulta em perda de potência dos motores em altitudes elevadas.
“Esses caminhões não conseguiriam transpor a barreira física das Cordilheiras dos Andes, pois enfrentariam muitos problemas e não são autorizados a rodar nessa região”, destaca o professor.
Dessa forma, produtos como proteína animal, suco de laranja e combustíveis apresentam maior viabilidade para uso da Rota Bioceânica, partindo diretamente de Campo Grande. Esses itens são transportados em carretas convencionais, com capacidade para até 35 toneladas. Por outro lado, com as facilidades logísticas proporcionadas pela Rota, Mato Grosso do Sul tende a se tornar um importante centro de distribuição de mercadorias importadas. Segundo Casarotto, o Brasil também deve intensificar a importação do gás argentino por meio do corredor.

Alternativas para o escoamento da soja pela Rota estão sendo analisadas por universidades, empresas e associações do setor. Uma das possibilidades seria o uso de contêineres, mas estudos apontam que, por enquanto, o modelo não oferece vantagens competitivas.
“O custo-benefício ainda é a principal questão. Desde a pandemia, com a escassez global de contêineres, os custos aumentaram significativamente”, analisa Casarotto. Outro obstáculo é a falta de infraestrutura adequada, como terminais de armazenamento de grãos nos portos chilenos. “Todos nós estamos estudando essas questões, que vão além da condição física da rota”, afirma.
Mesmo como os desafios, o presidente da Associação dos Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso do Sul (Aprosoja-MS), Jorge Michelc, demonstra otimismo. Para ele, a Rota Bioceânica será uma alternativa competitiva de escoamento nos próximos anos, reduzindo custos logísticos, ampliando o acesso aos mercados asiáticos e promovendo a integração com o setor produtivo.
“Entendemos que a Rota Bioceânica representa uma janela de oportunidades para o agro de Mato Grosso do Sul”, afirma. Michelc acredita que, com o tempo, os gargalos logísticos serão superados. “Com a Rota Bioceânica, Mato Grosso do Sul se tornará um corredor natural de exportação para a Ásia”, avalia.
Com extensão de 2.396 quilômetros, a Rota ligará os oceanos Atlântico e Pacífico por meio dos portos de Antofagasta e Iquique, no Chile, ampliando a conexão com os mercados asiáticos — especialmente a China, maior parceira comercial do Brasil e de Mato Grosso do Sul.

Deficit de caminhoneiros
Outro gargalo é o deficit de motoristas qualificados para atuar em rotas internacionais. O presidente do Sindicato das Empresas de Transporte de Carga e Logística de Mato Grosso do Sul (SetLog-MS), Claudio Cavol, aponta que a escassez de profissionais é preocupante.
Segundo ele, o deficit no estado ultrapassa 15 mil motoristas. “Hoje, se tivéssemos 10 mil motoristas prontos, todos estariam empregados no mercado de trabalho em Mato Grosso do Sul”, afirma.
A tendência é de que a situação se agrave com o início das operações da Rota Bioceânica dada a expectativa de aumento do fluxo logístico. Cavol ressalta a necessidade de preparar também a frota internacional.

Entre os fatores que desestimulam novos profissionais estão a falta de segurança nas estradas e a ausência de infraestrutura adequada.
Para enfrentar o problema, Cavol defende que o Brasil, incluindo o Sistema S, invista em treinamento e qualificação de motoristas para operar veículos pesados. Ele aponta que o domínio do espanhol será um diferencial.
“A barreira linguística aumentará os custos operacionais. O motorista vai exigir mais para realizar transporte internacional, pois precisará conhecer uma legislação mais rigorosa, superar a barreira do idioma e saber se comunicar minimamente em espanhol nos postos fiscais”, exemplifica.
Ocorre que o Governo de Mato Grosso do Sul desenvolve desde 2023 programa "Voucher Transportador", que em 2025 passou a oferecer 3 mil vagas para formação gratuita de motoristas de carga e ônibus, justamente, para preparar profissionais para atender à crescente demanda do setor de transporte no Estado.
Sem custos, os motoristas podem acrescentar as categorias “D” e “E” às suas carteiras de habilitação. A formação é realizada em parceria com o Sest/Senat e inclui capacitação teórica e prática, o que significa investimento de cerca de R$ 3,5 mil por motorista beneficiado..
Além de promover empregabilidade, o Voucher Transportador atende às necessidades de grandes empresas instaladas em Mato Grosso do Sul
Desafios alfandegários e legais
A integração alfandegária entre Brasil, Paraguai, Argentina e Chile é outro ponto sensível. A estimativa é de que essa integração otimize o fluxo e reduza os custos operacionais. No entanto, segundo Cavol, ainda há lentidão na implementação de estruturas alfandegárias, como na rota que liga Porto Murtinho a Carmelo Peralta.
Outro entrave citado por ele é a necessidade de adaptação à legislação de transporte internacional. Para operar legalmente, empresas precisam atender às exigências da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e às legislações dos demais países envolvidos.
“Além da burocracia do Brasil, que já é extremamente complexa, ainda precisamos nos adaptar às regras do Paraguai, da Argentina e do Chile. É um imbróglio burocrático que inviabiliza a participação de pequenas e médias empresas no corredor internacional”, afirma.