Pesquisa aponta dados alarmantes sobre motoristas da Bioceânica
Resultado aponta que 56% dos profissionais tem elevado risco cardíaco e taxa de sífilis acima da média
Num esforço preventivo contra acidentes ao longo dos mais de 2,6 mil quilômetros da Rota Bioceânica, a Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) quer expandir o projeto “Saúde na Estrada”, que monitora as condições de saúde dos caminhoneiros, para outros municípios e países que integram o corredor internacional — que ligará o Brasil ao Chile, passando por Paraguai e Argentina.
O esforço, no entanto, esbarra na falta de financiamento necessário para ampliar as atividades do programa, iniciado em Campo Grande pelo curso de Medicina da instituição. Por meio do projeto, pesquisadores e bolsistas realizam avaliações de saúde em estruturas montadas em postos de combustíveis, oferecendo exames gratuitos e orientações aos caminhoneiros.
A professora do curso de Medicina da UEMS, Alessandra Machado, coordenadora do projeto, classificou os resultados obtidos até o momento como “alarmantes” e destacou a urgência de expandir o programa aos demais municípios ao longo da Rota. O resultado da pesquisa é, segundo ela, muito preocupante:
“Estamos finalizando o levantamento estatístico para publicação em revista científica. Dos 184 atendidos, 56% tinham risco cardiovascular elevado, ou seja, risco iminente de sofrer um evento grave como infarto, AVC, trombose, entre outros, dentro de um intervalo de 10 anos.”
Além disso, 50% dos atendidos apresentaram colesterol elevado, com necessidade de tratamento medicamentoso — que, em grande parte, não foi iniciado. “Após 15 dias, em contato telefônico, apenas 25% dos caminhoneiros haviam começado o tratamento. A principal justificativa foi a dificuldade de conseguir atendimento, devido ao caráter migratório do trabalho”, revela o estudo, com base em dados de 2023 a 2024, enviados ao Campo Grande News.
Esse cenário agrava a escassez de caminhoneiros no estado, essenciais ao escoamento de grãos. Atualmente, o setor logístico estima um déficit de cerca de 15 mil motoristas em Mato Grosso do Sul.
Impactos nas estradas
Questionada sobre a correlação entre problemas cardíacos e acidentes, a pesquisadora explicou que não há dados diretos que comprovem essa relação, mas os impactos são percebidos de forma indireta. “Quando a Polícia Federal faz o levantamento de acidentes, os principais fatores apontados são sono, distração ou imprudência ao volante.”
Ela acrescenta que esses fatores podem estar ligados às condições de saúde. “Pessoas com obesidade e doenças vasculares tendem a apresentar distúrbios do sono. Quando somamos isso ao fato de dormirem em condições precárias, como dentro dos caminhões, temos um risco ainda maior de acidentes por déficit de atenção e má alimentação.”
Segundo a pesquisadora, uma pessoa com essas condições, dirigindo um caminhão em uma estrada de pista dupla, pode causar tragédias comparáveis a um míssil.
Doenças transmissíveis
Outro dado preocupante revelado pelos estudos da UEMS é que 10% de um total de 164 profissionais (incluindo caminhoneiros, motoristas e frentistas) testaram positivo para sífilis, o dobro da média nacional. A pesquisadora destacou a preocupação com a disseminação da doença, que é tratável com antibióticos.
“Os casos foram notificados, e os profissionais orientados a buscar atendimento na rede pública de saúde. Após 15 dias, 14 dos 16 diagnosticados relataram ter iniciado o tratamento. Sem o projeto, muitos não teriam realizado exames preventivos.”
O objetivo do estudo é apoiar políticas públicas em níveis federal, estadual e municipal para melhorar a saúde dos trabalhadores que utilizam o corredor.
Para o reitor da UEMS, Laércio Alves de Carvalho, é essencial estender o programa aos demais trechos da Rota Bioceânica, cuja inauguração das primeiras etapas está prevista para 2026.
“Como muitas ações se iniciarão pelo trecho rodoviário e os caminhoneiros serão os principais usuários, o ideal é mapear e monitorar a saúde deles, para intervir precocemente”, afirmou o reitor ao Campo Grande News durante evento sobe a Rota Bioceânica em Brasília.
Ele ressaltou a importância da saúde dos caminhoneiros na prevenção de acidentes ao longo dos mais de 2 mil quilômetros entre Campo Grande e Iquique, no Chile. “Caminhoneiros saudáveis ajudam a reduzir acidentes.”
Segundo a pesquisadora Alessandra, o programa envolve 12 pesquisadores e 36 bolsistas, financiados por recursos federais e estaduais (CNPq, UEMS e Fundect). Já foram atendidas cerca de 500 pessoas, com serviços que incluem orientações em saúde, avaliação física, exames clínicos e laboratoriais. O total de exames já ultrapassa 2.200, com 248 pessoas diagnosticadas diretamente.
Necessidade de recursos
Ela reforça a necessidade de financiamento público para a expansão do programa, afirmando que os recursos obtidos até agora, via editais, são pontuais e insuficientes para atender à demanda. Há necessidade, por exemplo, de insumos para atendimento por telemedicina e kits de testagem rápida. A pesquisadora defende a destinação de emendas parlamentares e editais estaduais voltados especificamente à saúde na Rota.
“Ainda não conseguimos levar o projeto para municípios importantes como Porto Murtinho, Bataguassu e Aquidauana, justamente por falta de recursos. O projeto requer equipamentos, insumos e, principalmente, deslocamento para regiões de difícil acesso.”
Embora não tenha estimado um valor ideal para o financiamento, Alessandra lembrou que, em 2023, a Polícia Federal contabilizou a circulação de 3,5 mil caminhões por dia na BR-163, que liga Mundo Novo a Campo Grande — independentemente da safra e entressafra de grãos.
Atendimento
Por conta da escassez de recursos, o atendimento tem se concentrado em dois postos de combustíveis de Campo Grande, realizados ao menos uma vez por mês, no horário de descanso dos motoristas (das 17h às 21h). Os pesquisadores observam que o caminhoneiro trabalha praticamente todos os dias da semana e não consegue buscar atendimento médico em sua cidade de origem, já que as unidades de saúde geralmente estão fechadas quando ele retorna aos fins de semana.
A UEMS, que coordena a Rede Universitária da Rota de Integração Latino-Americana (Unirila), no contexto do projeto Rota Bioceânica, está em articulação com universidades parceiras, como a Universidade Nacional de Jujuy, na Argentina, e a Universidade Católica do Paraguai, para implementar o programa nos trechos da Rota Bioceânica nesses países. “Alguns países estão iniciando ações semelhantes. Na Argentina, por exemplo, após a transição presidencial, começaram a ser abertos novos editais.”
O coordenador geral do projeto na Rota Bioceânica, Ruberval Maciel, destacou ainda a urgência de se criarem pontos de apoio ao longo da estrada, e uma política permanente de atendimento aos caminhoneiros — grupo atualmente negligenciado nos orçamentos municipais.
“Estamos levantando esses dados porque quando as políticas públicas são formuladas com base em evidências, elas podem ter um direcionamento claro. Os problemas de saúde dos caminhoneiros eram invisíveis, e começaram a se tornar visíveis com a criação da Rota. Por exemplo, se alguém com doença sexualmente transmissível for medicado com benzetacil em um posto, como tomará a próxima dose? São questões complexas que precisam de atenção.”