Por que negar o pagamento do seguro obrigatório?
Em um país que, a cada ano, chora a perda de aproximadamente 33 mil vidas no trânsito e vê mais de 200 mil de seus filhos e filhas marcados por sequelas permanentes, a recusa em pagar indenizações às vítimas é muito mais do que uma falha burocrática: é uma ferida aberta na alma da nação, uma afronta à dignidade humana.
Desde novembro de 2023, um drama silencioso se desenrola para milhares de brasileiros. Mesmo cumprindo todos os requisitos legais, eles têm seus pedidos de indenização do Seguro Obrigatório (SPVAT) negados ou simplesmente ignorados. Essa omissão forçou a Defensoria Pública da União (DPU), em uma ação judicial crucial, a buscar na Justiça o mínimo: o respeito a um direito básico para vítimas que se acidentaram.
- Leia Também
- Por que o empreendedorismo é essencial no Brasil?
- Não existe evolução sem atravessar o incômodo
A situação beira o absurdo quando sabemos que existem R$ 2,6 bilhões já arrecadados pelo antigo DPVAT; um dinheiro que pertence às vítimas e que, segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), deveria ser liberado. Aliás, vale repetir o destacado por Lucio Almeida, presidente do Centro de Defesa das Vítimas de Trânsito (CDVT), "com esse valor, seria possível indenizar todas as vítimas de 2023 e 2024".
O que impede, então, que a justiça e o amparo cheguem a quem mais precisa? Quais interesses se sobrepõem à dor de famílias que, além do luto e do sofrimento físico, são empurradas para um abismo financeiro?
A violência no nosso trânsito, que ceifa 92 vidas por dia, não é um acaso. Ela é fruto de um contexto complexo, que inclui a imprudência, mas também uma infraestrutura viária alarmantemente precária — 74% das nossas rodovias apresentam algum tipo de problema. Negar o amparo do seguro obrigatório nesse cenário é penalizar duplamente a vítima, abandonando-a à própria sorte.
Conforme ainda alerta Lúcio Almeida, "o Brasil não tem nenhuma política pública voltada às vítimas do trânsito". É uma falha grave, que nos coloca em uma posição vergonhosa até mesmo em comparação com nossos vizinhos. Enquanto países como Peru, Equador e Venezuela garantem cobertura às suas vítimas por meio de seguros obrigatórios, independentemente de culpa, o Brasil abandona as suas próprias vítimas.
Essa atitude vai na contramão dos pilares da nossa sociedade, determinados pela Constituição Federal de 1988. Nossa Carta Magna estabelece, em seu artigo 6º, a saúde e a assistência aos desamparados como direitos sociais invioláveis. Ao negar a indenização, o Estado falha em seu dever de cuidado e cria uma política de exclusão. Essa exclusão é ainda mais cruel quando pensamos nas vítimas que adquirem alguma deficiência, minando o espírito constitucional.
A conta dessa omissão é devastadora e chega, inevitavelmente, ao Erário. Sem o amparo do seguro, as vítimas sobrecarregam ainda mais o Sistema Único de Saúde (SUS). Apenas em 2024, o SUS gastou R$ 449 milhões com internações de acidentados. Para agravar o quadro, o fim da arrecadação do DPVAT em 2020 abriu um rombo anual de R$ 580 milhões no orçamento do SUS, recursos que antes eram destinados justamente ao custeio do atendimento a essas vítimas. É um ciclo de negligência que drena recursos da saúde pública para remediar uma crise que poderia ser mitigada com prevenção e amparo.
É preciso romper com a inércia que nos adoece como sociedade. O papel da Defensoria Pública é justamente dar voz a quem o sistema tenta silenciar, e a luta de organizações como o CDVT, que defende em Brasília medidas como indenizações por óbito e reembolso de despesas médicas, é fundamental.
É muito mais que uma questão financeira; é defender um país que cumpre suas promessas constitucionais, que valoriza cada vida e que entende que a verdadeira força de uma nação se mede pela forma como ela cuida dos seus vulneráveis. É lutar por um Brasil mais Justo, mais Inclusivo e, acima de tudo, mais Humano.
(*) André Naves, Defensor Público Federal e especialista em Direitos Humanos e Inclusão Social
Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.