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Comportamento

"Apanhei porque era isso que eu merecia: todo homem iria me bater"

Paula Maciulevicius | 16/03/2016 06:23
"E ele pegou no meu pescoço e me levantou"... A "justificativa" dada pelo agressor era o trabalho dela. (Foto: Júlia Kaifanny)
"E ele pegou no meu pescoço e me levantou"... A "justificativa" dada pelo agressor era o trabalho dela. (Foto: Júlia Kaifanny)

"Ele dizia que eu merecia apanhar e que todo homem que eu achasse, também ia me bater. Eu era filha da puta, égua, ele me mandava pegar uma pá e juntar as minhas merdas".

Esse discurso foi ouvido durante os últimos 20 anos por Maria. O nome fictício é de uma mulher de 35 anos, mãe de quatro filhas, com idades de 4 até 15 anos, que apanhou durante duas décadas do então marido só por "contrariá-lo".

"Se eu contrariasse ele em qualquer coisa, começava (a bater) e na frente de qualquer um". Foram vários os episódios de violência desde que ela, ainda menina, vestiu uma saia curta e teve a roupa rasgada. Pensou que era "ciúmes". E acreditou que tinha "motivado".

Três anos depois de estarem juntos, nasceu a primeira filha e depois uma seguida da outra. O casal se mudou para Campo Grande por exigência dele. Maria vendeu carro e casa no país de origem, fronteira com o Brasil e aceitou morar na Capital com a promessa de que "nada faltaria à ela e nem às meninas".

"Se eu contrariasse ele em qualquer coisa, começava e na frente de qualquer um". (Foto: Júlia Kaifanny)
"Se eu contrariasse ele em qualquer coisa, começava e na frente de qualquer um". (Foto: Júlia Kaifanny)

O que se viu foi justamente o contrário. Uma violência psicológica e física que começava quando o marido abria a porta de casa. O que encontrasse no caminho era chutado e tudo, tudo era motivo de reclamação. Se as queixas viessem só com palavras... Maria ouvia gritos, xingamentos e o corpo encontrava com as paredes de casa com frequência. Era jogada contra o que ele achasse na frente. Foi ameaçada de morte e chegou a ter uma faca colocada no pescoço.

"Eu estava cortando uma carne e ele começou a reclamar das coisas. Eu só levantei as mãos e virei para dizer que eu estava cansada, mas não tinha a intenção de ir para cima dele. Ele pegou a faca e me ameaçou: 'se você fizer alguma coisa, eu vou te furar'".

Em Campo Grande, a promessa de uma vida tranquila foi por água abaixo. O dinheiro foi todo gasto em festas. "Ele fazia churrasco quase toda semana com bebidas, convidava parentes e foi gastando todo o nosso dinheiro. Eu comecei a trabalhar para ajudar em casa. E ele me pedia todo o dinheiro, se eu não desse, ele me colocaria ainda mais para baixo.

Num acordo com a família, o marido pode construir uma casa simples, sem acabamento, no terreno da irmã. A estrutura possibilitou Maria de ter uma pequena mercearia no bairro, que servia para por comida dentro de casa. "Mas era tudo eu. Eu que pagava a luz, eu que comprava. Ele chegava bravo por tudo. Ou tudo era pouco, ou era demais, nunca estava bom para ele.

Ele entrava chutando tudo. Nos finais de semana, ele saía sexta e voltava só domingo. Se Maria perguntasse, era murro da certa como resposta. "Ele me batia e dizia: que te interessa? Era violento também nas palavras. Eu só ficava chorando, não podia responder nada".

Maria contando uma, das várias vezes, em que foi empurrada contra as paredes de casa. (Foto: Júlia Kaifanny)
Maria contando uma, das várias vezes, em que foi empurrada contra as paredes de casa. (Foto: Júlia Kaifanny)

As filhas também eram vítimas. Se o marido estivesse em casa, qualquer barulho que viesse do quarto era motivo para as quatro apanharem. A mãe interferia e a raiva era direcionada a ela. Pescoço, costas, braços, rosto. O alvo era um só: Maria.

Na última briga que tiveram, ele jogou toda mercadoria da mercearia no chão e na rua, deixando a mulher sem ter o que vender. "E ele pegou no meu pescoço e me levantou"... A "justificativa" dada pelo agressor era o trabalho de Maria. "Ele falava: 'perdi minha mulher por causa dessa mercearia. Não, não era por causa disso, foi pelos maus tratos, pela violência verbal, física. Aí ele começou a jogar minhas coisas, eu segurei para ele não fazer isso e foi mais um empurrão, contra essa parede aqui".

Nas horas seguintes às agressões, nunca houve qualquer arrependimento ou pedido de desculpas. Ele achava que era normal bater e Maria, que era normal apanhar. "Eu tinha medo que faltasse alguma coisa para as meninas... Mas foram 20 anos, eu estava muito cansada. Eu achava que ser xingada era normal, mas eu não merecia isso".

Foi uma vizinha, com uma história semelhante, que deu oportunidade à Maria de trabalhar como auxiliar de cozinha no comércio do irmão.

Quando o marido deixou de vez a família, quatro meses depois Maria conheceu um rapaz. "Mas ele não podia vim aqui em casa. Ele não bebe, não fuma, não tem vício. Mas ele dizia que se viesse aqui e encontrasse, ele ia me matar, matar ele e tirar as crianças de mim".

Foi aí que ela resolveu prestar queixa na Casa da Mulher Brasileira. "Eu estava cansada. Quem mantém essa casa? Quem coloca coisas para as filhas dele comerem? Quem paga a luz? Sou eu. E ele me empurrava e me batia porque eu 'passava dos limites'?", se pergunta.

"Era sempre assim. Eu não podia contrariar. Tinha que ficar quieta e não tinha justificativa para o que ele fazia. Ele dizia que eu não ia achar nunca ninguém igual a ele e que todo homem ia me bater porque eu merecia isso, mas nenhuma mulher merece essas coisas. 

Nós, mulheres, podemos fazer as mesmas coisas que um homem faz. Eu tenho quatro filhas e consegui. Eu tive coragem e ninguém nunca mais me xingou e eu também não vou deixar que aconteça de novo". 

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