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Comportamento

"Nem azul, nem rosa": pansexual curte todo mundo independente do gênero

Ainda pouco conhecidos, os pansexuais estão entre nós e, apesar de não terem vindo de outro planeta, ainda são vistos como se não fossem deste mundo.

Gustavo Maia | 06/01/2019 07:40
Flamariom Patrízio é homem transgênero pansexual. (Foto: Gustavo Maia)
Flamariom Patrízio é homem transgênero pansexual. (Foto: Gustavo Maia)

Você já ouviu falar da Pansexualidade? Em tempos de discussão sobre quem usa azul e quem usa rosa, o Lado B foi conhecer quem não se importa muito com essa questão de gênero. Pelo menos na hora de escolher a paquera. Pansexual é a pessoa que sente atração, afetiva ou sexual, por pessoas independentemente do gênero - pode ser uma mulher ou um homem cisgênero, um homem ou mulher transexual ou até mesmo alguém sem gênero definido, ou ainda quem transite entre vários gêneros.

Achou confuso? Relaxa, a gente explica. E não, eles não fazem sexo com animais, plantas ou objetos, como alguns pensam. 

A acadêmica de psicologia Vanessa Naves, de 21 anos, conta que rola uma confusão entre pansexualidade e bissexualidade, mas são conceitos bastante diferentes. “As pessoas geralmente confundem uma coisa com a outra, mas não é bem assim. Sei que é só uma questão de rotulação, mas pansexualidade abrange pessoas trans, não binários, intersexuais, gêneros fluídos, enfim, todo ser humano. É uma atração pela pessoa, e não pelo gênero. O que me chama mais atenção numa pessoa é como ela me trata, é uma questão de afeto e não apenas de sexo, eu sou muito romântica”, explica ela.

Vanessa Naves veio do interior de São Paulo para estudar Psicologia. (Foto: Arquivo Pessoal)
Vanessa Naves veio do interior de São Paulo para estudar Psicologia. (Foto: Arquivo Pessoal)

Vanessa conta que vivia numa cidadezinha do interior de São Paulo, daquelas onde todo mundo se conhece e todos vão à igreja. Por isso, ela não conhecia conceitos menos populares como transexualidade, drag queen, gênero não binário, entre outros. A única coisa que naturalmente a apresentaram foi a heterossexualidade. Mas com o passar do tempo ela percebeu que não sentia atração apenas por garotos. Só que apenas em 2018, depois de já ter se relacionado com pessoas que não são cisgênero, ou seja, que não se identificam com o sexo biológico que nasceram, é que ela descobriu que existe um lugarzinho no mundo para ela, que não curte apenas garotos e garotas: a pansexualidade.

Cursando Psicologia na UFMS ela teve acesso a informações que a levaram a compreender melhor sua sexualidade e identidade de gênero. Foi então que ela entendeu que, apesar de ser mulher cis, ou seja, ter nascido num corpo feminino e se enxergar como mulher, ela é pansexual, por conta de sua orientação.

Assim como grande parte das pessoas que saem da caixinha da heterossexualidade, Vanessa não encontrou apoio onde mais esperava: a própria casa. “Infelizmente com a minha família a aceitação é complicada, eles são muito religiosos. Não consegui falar abertamente sobre e explicar tudo isso pra eles. Ainda é um tabu muito grande. Para eles só existem dois gêneros: homem e mulher, e um tem que sentir atração pelo outro e pronto. Já com a minha irmã eu converso abertamente sobre qualquer coisa, ela é minha grande amiga”, relata ela, acrescentando que o preconceito também está presente onde menos deveria existir: o próprio meio LGBT. “Sempre aparecem algumas pessoas que dizem que panfobia e bifobia não existem, por exemplo. Garotas lésbicas já deixaram de ficar comigo por eu já ter me relacionado com homens. A gente tem que ouvir esse tipo de coisa do próprio grupo que deveria nos apoiar”, desabafa.

Flamariom exibe a nova Certidão de Nascimento. (Foto: Gustavo Maia)
Flamariom exibe a nova Certidão de Nascimento. (Foto: Gustavo Maia)

Ela explica que a panfobia não é tão recorrente quanto a transfobia ou a homofobia, por exemplo, mas isso não significa que o preconceito não exista. “Claro que o sofrimento de quem se relaciona com uma pessoa transexual não é igual ao que ela passa, mas a gente acaba compartilhando algumas situações difíceis só por estar se relacionando com a pessoa”.

Quem também tem experiência no assunto é o tatuador Flamariom Patrízio, de 24 anos. Nascido num corpo feminino, ele conta que sempre se entendeu como homem e há três anos iniciou um tratamento hormonal para fazer a transição de gênero - do feminino para o masculino. Na época, Flamariom ainda vivia em Campinas, no estado de São Paulo, onde passou a frequentar o Centro de Referência LGBT da cidade. E foi lá que ele encontrou outras pessoas que viviam a mesma realidade que ele e partilhavam da mesma visão de mundo. “Eram vários transexuais numa sala e foi ali que eu vi que eu não era o único, que eu não estava perdido no mundo tentando me achar. Porque até então eu não via ninguém por aí como eu. Foi aí que me despertou o interesse em saber tudo o que a vida tinha a me oferecer”, relata ele, que fez sua nova certidão de nascimento há duas semanas.

Além de ser um homem transexual, o tatuador se identifica com a orientação pansexual. Quando perguntado sobre o assunto, ele começa explicando do jeito que entende: “pansexualidade é como a homossexualidade, é uma orientação sexual, é o meu gostar, meu amar sem julgamentos. Não me importa o gênero da pessoa, o que ela veste, de onde ela vem. Pode ser homem, mulher, transgênero. Pode até ser hétero, mas aí ela vai ter que decidir depois o que ela é, se relacionando comigo”, explica ele, rindo da confusão que rola na cabeça de algumas pessoas.

“Eu sou uma pessoa que já me enquadrei em muitas letras da sigla LGBT, então confunde um pouco a cabeça das pessoas. Mas hoje eu sou um homem trans, esse é o meu gênero. E sou pansexual, essa é a minha orientação sexual”, afirma. Para ele, se assumir pansexual, além de abrir muitas possibilidades de se relacionar com as pessoas, foi uma grande oportunidade de relacionamento com ele próprio. “A curiosidade de querer saber do mundo, de não apenas se rotular, mas se libertar de várias coisas, se aceitar melhor, aceitar o seu corpo, sua vida. Hoje eu me envolvo com qualquer tipo de pessoa: preto, branco, índio, gordo, magro, sem um braço, eu não julgo mais ninguém. É uma libertação porque eu não procuro nada, eu aceito tudo. Deixo a vida me trazer o que há de melhor, eu só vivo”, filosofa ele.

Bandeira Pansexual reúne as cores rosa e azul, simbolizando os gêneros binários e a cor amarela, representando os não binários. (Foto: Reprodução/Internet)
Bandeira Pansexual reúne as cores rosa e azul, simbolizando os gêneros binários e a cor amarela, representando os não binários. (Foto: Reprodução/Internet)

Quando questionado sobre o que mudou, na prática, depois de ter assumido sua pansexualidade, Flamariom não hesita: “nada. Eu sempre fui assim. O que acontece é que a gente vai se rotulando, mas pra mim isso tudo sempre foi muito normal, as pessoas que me olham de um jeito diferente”.

Para desconstruir esse olhar preconceituoso que boa parte das pessoas têm, Flamariom criou, em parceria com amigos, uma série fotográfica chamada Projeto Ser, onde eles discutem, através da fotografia, suas percepções do mundo. Nas palavras dele, o projeto “serve para mostrar que não há padrão de beleza, mostrar todos os tipos de pessoas, sua sexualidade e os detalhes íntimos que o ser carrega, independente de cor, tipo físico, estilo ou classe social”, define ele.

E quem também encara a pansexualidade com muita naturalidade e usa a arte para discutir o tema é o fotógrafo Tui Boaventura, de 20 anos. Ele, que é acadêmico do curso de Ciências Sociais da UFMS, conta que inicialmente se considerava bissexual, mas depois percebeu que não precisava se limitar aos gêneros binários - masculino e feminino. “Depois de um tempo deixou de fazer sentido pra mim aquela definição de bissexualidade, quando eu entrei em contato com discursos sobre a transexualidade e passei a conviver com pessoas transexuais. Ficou bem claro pra mim que a bissexualidade não abrangia toda a complexidade da minha sexualidade”, explica ele, criticando o padrão socialmente aceito da heterossexualidade, que para ele é algo compulsório: “por mais que a pessoa não sinta atração pelo mesmo gênero, em momento algum ela teve a opção de refletir livremente sobre isso. Mesmo que você se sinta confortável como hétero, é preciso pensar se você teve poder de escolha em algum momento da sua vida, ou se simplesmente decidiram isso por você. Porque a nossa sociedade não oferece esse espaço para questionamentos, para escolhas. Quem nasce homem tem que gostar de mulher e quem nasce mulher tem que gostar de homem”, aponta.

Tui Boaventura é fotógrafo e estudante de Ciências Sociais. (Foto: Gustavo Maia)
Tui Boaventura é fotógrafo e estudante de Ciências Sociais. (Foto: Gustavo Maia)

Para ele, o corpo é só uma embalagem “para carregar alguém que é cheio de potência, de vontades, de desejos, de reflexões. Alguém que traz uma bagagem cultural, emocional, intelectual, que viveu várias coisas. Então não me importa se essa pessoa é negra, branca, asiática, parda, da umbanda, transexual, cis, nada disso importa. Essas coisas não definem se alguém é bom caráter ou não, se vai ser legal eu me relacionar com ela ou não”.

“Sexo biológico é uma coisa, agora gênero é outra completamente diferente. Pra mim, gênero tá muito mais relacionado à performance. São atributos identitários, são maneiras de agir, simbolismos que a gente associa a nós mesmos, como nossa roupa, a maneira como a gente se enxerga, age e se comporta. São aquelas expectativas que são postas sobre a gente desde o momento do nascimento: o homem tem que ser bruto, rude, não pode demonstrar suas emoções; enquanto isso, o que se espera da mulher é que ela seja frágil, delicada, submissa, emocional. Isso tudo não passa de performances dos valores que as pessoas simplesmente reproduzem”, acredita ele.

Tui, que diz não se enxergar como um militante da causa LGBT, prefere fazer provocações através de sua arte, a fotografia. “Eu sou um militante da comunicação. Busco levar essas discussões adiante trabalhando a identidade visual, trazendo um pouco dessas questões de gênero, sexualidade e classe social. Porque o que a gente vive hoje é um conflito de narrativas”, afirma ele, que em alguns ensaios também assume o papel de modelo. “É muito legal me permitir entrar em diferentes personagens, me ver por um diferente olhar. Porque querendo ou não, a gente passa a vida inteira se vendo com os mesmos olhos. Por que não se ver como mulher um dia?”, provoca ele.

“Eu não escondo de ninguém, mas também não saio por aí anunciando que sou pansexual. Eu só toco no assunto se alguém me perguntar sobre, eu não chego nas pessoas falando ‘bom dia, eu sou pansexual’. Mas eu tenho os meus trejeitos, não penso em gênero quando escolho as minhas roupas, quando corto o meu cabelo, então fica evidente que eu não me encaixo muito no padrão hétero”, afirma.

Tui explora as possibilidades de ser. (Foto: Gustavo Maia)
Tui explora as possibilidades de ser. (Foto: Gustavo Maia)

Ele diz que nunca sofreu preconceito, mas admite que isso é um privilégio que não condiz com a maioria dos casos de LGBTs. Aceito pela família e pelos amigos do jeitinho que é, ele garante que não admite alguém querer saber mais sobre ele do que ele próprio. “Eu sempre fui muito aceito até porque eu sei bem quem eu sou e defendo muito isso. Então, se alguém quiser me questionar sobre o que eu sou, vai perder tempo porque eu já passei dessa fase. Se você tem dúvida sobre o que eu sou, o problema é seu”. E sobre a discriminação que às vezes rola dentro da própria comunidade LGBT, ele enxerga como algo natural, mas que isso não significa que seja certo. “Isso acontece porque são pessoas, como qualquer outra, então têm concepções sobre o que é certo e errado moldadas pela visão de mundo de cada uma delas. Então nem todo mundo dentro do meio LGBT vai estar sempre em concordância”, avalia.

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Confira a galeria de imagens:

  • Projeto Ser (Foto: Reprodução/Instagram)
  • Tui Boaventura (Foto: Reprodução/Instagram)
  • Tui Boaventura (Foto: Reprodução/Instagram)
  • Projeto Ser (Foto: Reprodução/Instagram)
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