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Comportamento

A luta dos Ofayé para salvar uma língua quase extinta, falada por 5 pessoas

Brasilândia reúne 5 falantes da língua Ofayé, únicos no mundo. Agora, por meio da escola, crianças são a promessa de reviver a língua

Izabela Sanchez | 07/03/2019 07:42
Criança Ofayé observa o fotógrafo na aldeia onde vivem em Brasilândia (Foto: Ascom/MPF)
Criança Ofayé observa o fotógrafo na aldeia onde vivem em Brasilândia (Foto: Ascom/MPF)

“Ãnhora owixow xo’é”. “A língua é a casa do homem” é a tradução em português, para a frase em Ofayé. Se a língua é a morada do homem, mesmo depois de reconquistar seu território em Brasilândia, a 355 km de Campo Grande, o povo Ofayé ainda não tem a casa completa. A etnia tem apenas 5 falantes em todo o mundo, todos concentrados na aldeia onde vivem os indígenas em Brasilândia.

Passada de mãe para filho, a língua é hoje reproduzida apenas por 5 adultos, a maioria “anciões” da comunidade. A tentativa, agora, é fazer a língua reviver nas crianças que frequentam a escola municipal localizada na aldeia. Professores bilíngues - um deles um dos 5 falantes - e linguistas travam essa batalha cultural e constroem, aos poucos, a parede da casa simbólica dos Ofayé.

Essa etnia, cuja língua está ligada ao tronco Macro-Jê, é uma das mais antigas do Brasil e com presença mais antiga em Mato Grosso do Sul. Caçadores e coletores, estavam espalhados por todo o estado, já foram confundidos com os xavantes e se concentraram às margens do Rio Paraná.

É o que explica o pesquisador e antropólogo que conviveu durante anos com a etnia, Carlos Alberto dos Santos Dutra. “Houve um descaso com relação aos Ofayé, a região que mais habitavam era Campo Grande, então os vivos Ofayé são os vivos mais primitivos de Mato Grosso do Sul, superam os Kaiowá. Eles eram caçadores e coletores. Estudos demonstram a presença deles desde 4 mil anos atrás, através de objetos arqueológicos”, conta.

Algumas frases em Ofayé (Foto: Ascom/MPF)
Algumas frases em Ofayé (Foto: Ascom/MPF)

“Os Ofayé tiveram grupos, habitavam na região do taboco, com a guerra do Paraguai [1864 – 1870] foram empurrados em direção a São Paulo, às margens do Rio Paraná, migraram dessa região mais ao sul, então justifica a presença deles nessa região [Brasilândia] em função dessa migração. Teria havido outro grupo na região de Rio Verde, com documentação de 1905, que mostra que desceram do Rio Verde, pelo Rio Paraná e chegavam até Ivinhema”, explica.

Segundo o pesquisador, há, inclusive, certidões de nascimento dos indígenas na Fazenda Esperança em Brasilândia, alvo de disputa judicial no território. O processo de avanço da pecuária e lavouras, explica, foi acabando, aos poucos, com o modo de vida nômade dos Ofayé.

“Começara a plantar arroz, além da mandioca, isso é uma coisa recente, a partir de 1900. Quando eles foram encontrados no Rio Verde, eles já estavam morando já em casas, aldeias mais fixas. O processo de sedentarização foi muito mais rápido e tranquilo, mas para os povos coletores e caçadores foi muito em função das condições de caça e pesca, começou a lavoura, as cercas foram dividindo o território e acabam sendo aldeados”, conta.

Miscigenação – Aos poucos, outras etnias começaram a conviver com os Ofayé, processo que contribuiu para que a língua tivesse o número de falantes reduzidas. Casamentos com outras etnias, a exemplo dos Guarani e Kaiowá, dificultaram a passagem “de mãe para filho” da língua.

“Os Ofayé estão casando muito com os Kaiowá, eles estão com um grupo completamente diferente. É matriarcal, são as mães que conferem identidade. Os Ofayé não têm filho de mãe Ofayé e sim mãe Kaiowá. Só foram reconhecidos em 1992 [pela Funai], começou a vir outras etnias para dentro da aldeia, e acabou tirando aquele ethos, a parte mais sólida que o grupo tinha, que era conviver com a língua. Foi afrouxando os laços, acabou fazendo com que a língua ficasse esquecida”, explica o antropólogo.

Carlos afirma que, além disso, a escola dentro da aldeia, com a presença de professores não indígenas, distanciou os índios da língua.

Indígenas Ofayé em Brasilândia (Foto: Ascom/MPF)
Indígenas Ofayé em Brasilândia (Foto: Ascom/MPF)

“Tudo adormeceu” – Hoje vivem em torno de 100 pessoas na aldeia em Brasilândia. Professor, Silvano Morais de Souza, 30, é um dos indígenas “da nova geração” que fala pouco a língua Ofayé. Ele lamenta que com a linguagem, vai embora também a cultura. “A etnia Guarani é muito forte na questão cultural e linguística, eles falam muito, desde crianças a idosos, é um choque cultural, eles param de falar o Ofayé, é uma nova cultura surgindo”, explica.

“A língua materna é adormecida, aprendi até os 8 anos, consigo falar algumas coisas, sou o que chamam de falante passivo. Fico triste por ver desaparecer, mas esperançoso por revitalizar em termos de educação. A educação pode fazer o povo ser reconhecido culturalmente. Hoje tudo se adormeceu, cultura, língua, tradições e dança. Mas vejo uma revitalização com o professor”, disse.

Uma ação civil pública movida pelo MPF-MS (Ministério Público Federal em Mato Grosso do Sul) garantiu, na Justiça, as condições para que as cerca de 14 crianças da escola aprendam a língua com qualidade e estrutura. A sentença judicial determina que caberá ao estado e ao município promoverem o resgate escrito e imediato da língua Ofayé “para sua permanente preservação”, por meio de linguistas a serem contratados.

Alerta global - Hoje, as crianças já aprendem com uso de dicionário e uma cartilha ilustrada está a caminho. Esse resgate é simbólico e integra um alerta global, feito pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), que determinou 2019 como o ano internacional das línguas indígenas. Coordenadora interina de cultura da Unesco no Brasil, Isabel de Paula explica que a determinação estabelece um calendário e serve como incentivo aos países, em especial ao Brasil.

“O ano internacional das línguas indígenas foi proclamado pela assembleia geral das nações unidas como uma estratégia para chamar a atenção do mundo, dos riscos enfrentados pelas línguas indígenas, porque são consideradas um patrimônio imaterial. São conhecimentos relacionados às suas tradições, às suas línguas, às sua culinária, à sua medicina, conhecimentos ritualísticos. São muitos conhecimentos que precisam ser salvaguardados para a continuidade da própria humanidade”, comenta.

A sala de aula onde, aos poucos, a língua começa a reviver (Foto: Ascom/MPF)
A sala de aula onde, aos poucos, a língua começa a reviver (Foto: Ascom/MPF)

A língua começa a acordar – É pela ação de professores como José Koi, que ensina a língua às crianças de 6 a 14 anos, que a língua Ofayé vai, em breve, “acordar”. “É um trabalho que precisa de muita paciência para convencer eles a valorizarem a cultura e a língua. O jovem indígena... eles têm vergonha de se identificar como índio, para nós isso é muito ruim. Temos que valorizar a luta das lutas das lideranças que já se foram. Passo para eles a importância da língua, da cultura e valorizar a história”, diz.

José aprendeu a falar Ofayé de forma tradicional, com os pais e avós. O português ele só aprendeu a falar com 11 anos e afirma que até hoje tem dificuldades. “Minha metodologia é de ensinar eles de acordo com a realidade, as cores das frutas, das árvores, a qualidade da moradia, como era a comunidade antes”, conta.

Números em Ofayé (Foto: Ascom/MPF)
Números em Ofayé (Foto: Ascom/MPF)

Segundo explicou o professor, o dicionário utilizado é fruto do trabalho de linguistas e pesquisadores. “Tem linguistas que estão empenhados na elaboração da cartilha, contratados pelo estado. Hoje já aprenderam [crianças] a falar algumas palavras. A gente está tentando conversar com os pais para que eles estimulem os filhos”, conta.

“É a luta de um povo que sofreu várias perseguições, perdeu seu território, ficamos perambulando para lá e para cá. Retornamos para cá em 1986, sofremos muita perseguição dos fazendeiros. Eu acho que a importância é que a Constituição garante tudo isso, a gente tem garantido na lei. E que os jovens e as crianças venham a conhecer a língua, com uma educação diferenciada”, opina.

José finaliza com uma lição, trazida pelos não indígenas, que garante que agora nada mais se perde: “Aprendemos com os não índios a registrar [por escrito e de outras formas, a língua]. Nosso objetivo é revitalizar as coisas do passado”, conclui.

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