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Comportamento

A vida de uma jornalista sul-mato-grossense em meio à loucura do Rio de Janeiro

“Eu tinha tudo pra ser uma barbie, mas o Rio não deixa, essa cidade me mostra todo dia que o mundo vai muito além do meu umbigo.”

Thailla Torres | 15/07/2019 07:27
Um dos momentos marcantes da profissão. (Foto: Arquivo Pessoal)
Um dos momentos marcantes da profissão. (Foto: Arquivo Pessoal)

Há 10 anos, Patricia Hadlich Aquino chegou no Rio de Janeiro para atuar como jornalista. Campo-grandense, à época, ainda jovem, solteira e sem filhos, fazer cobertura do Rio era como viver um filme de ação. Hoje, tudo mudou. Ela e muitos colegas atuam em um contexto de alto risco, censura e problemas. Mas o tapa na cara diário atrai o olhar mais sensível de Patrícia para um realidade fora do próprio umbigo, por isso, embora muitas vezes ela queira estar no Mato Grosso do Sul, ela conta no Voz da Experiência como é ser jornalista numa cidade onde o desejo principal é “menos bala e mais amor”.

Patricia durante cobertura jornalística usando colete à prova de balas. (Foto: Arquivo Pessoal)
Patricia durante cobertura jornalística usando colete à prova de balas. (Foto: Arquivo Pessoal)

Pati, coloca o colete, o bicho vai pegar.

Com o coração a mil, atravessei a rua correndo em direção ao carro da emissora, onde estava o colete à prova de balas, mas não deu tempo. Os tiros começaram a furar o muro onde eu estava. Me joguei no chão. Tentava falar no rádio (a gente ainda não usava celular), mas não conseguia. Meu chefe de reportagem gritava "se protege, pelo amor de Deus!".

Cobrir o Rio há dez anos, quando cheguei, era uma grande aventura. Jovem, solteira, sem filhos, me sentia dentro de um filme de ação. A gente vivia nas favelas, ou com a polícia ou com os moradores. Subia o morro pra falar com os traficantes. Armados geralmente com fuzis, eles davam o aval para a reportagem. Passava por criminosos endolando droga, muito dinheiro exposto na mesa. "Finge que é normal", alertava o morador. Os intensos tiroteios sempre terminavam em algum bar da favela. Ali, jornalistas e policiais tomavam um café e falavam da operação. Uma vez, em um desses 'descansos' o delegado colocou o fuzil em cima de um carro e ofereceu uma coca-cola. Estávamos rindo quando um bandido virou a esquina e deu de cara com a gente e com o delegado desarmado. Ele não atirou, teve a reação de correr e mais à frente foi capturado pelos policiais. Naquela época, a gente se sentia imortal.

Hoje, tudo mudou. As favelas estão em guerra, facções brigam pela tomada de território e milicianos tentam (e conseguem) expandir as áreas de atuação. A gente tem medo 24 horas. No trabalho, da milícia (ameaças não são incomuns entre os repórteres). Na rua, de assalto. Com as crianças (tenho dois filhos pequenos, de 2 e 4 anos), prefiro usar carro de aplicativo (com motorista conhecido, porque já peguei um uber armado), porque posso colocar os dois no colo. Já pensou tirar duas crianças da cadeirinha durante um roubo? Daquele cinto que não abre nunca? Aqui qualquer movimento pode ser fatal.

O Rio é uma cidade louca. Ser jornalista aqui é mais louco ainda. Já tive que sair correndo durante a cobertura ao vivo de um atropelamento porque começou um tiroteio. Já cobri enterro debaixo de tiro. Já chorei ao vivo e não consegui dar a morte de uma criança. Uma vez, no meio de um tiroteio, corri pra dentro da casa de uma moradora. Meu auxiliar gritou "ei! E quem vai fechar a matéria?". Não tem escapatória.

No dia a dia com os companheiros de profissão. (Foto: Arquivo Pessoal)
No dia a dia com os companheiros de profissão. (Foto: Arquivo Pessoal)

Uma vez em uma comunidade dominada pela milícia a intimidação foi tão forte que toda a imprensa tomou a decisão de sair. Saímos juntos, em comboio, um dando 'segurança' ao outro. Esse dia foi marcante. Reunimos os repórteres e falamos baixinho. Cada um conversou com sua redação. Fui contra sair. Estava com medo, claro, mas todos os veículos (jornais, rádio, tv) estavam lá. Naquele dia, a milícia venceu. Me deu um nó no peito sair da favela deixando aquele povo tão refém. Gente que já é abandonada pelo poder público não pode ser abandonada pela imprensa.

Outra vez não conseguimos gravar em um município da baixada fluminense onde o domínio da milícia é muito forte. Políticos, policiais, não é possível saber em quem confiar. Minha equipe paralisou de medo e a gente foi embora com um carrão blindado de vidro escuro escoltando até sairmos da cidade.

Mas, pra denunciar, é preciso sobreviver. E precisamos encontrar novas formas de fazer isso. Na era do celular, os moradores ajudam muito. Eles filmam em lugares onde não conseguimos chegar.

No geral, tem que obedecer as leis da criminalidade, sem aspas. Pra entrar na favela, tem que abaixar os vidros, ligar o alerta, andar devagar e 'desenrolar' com os meninos. Hoje em dia, quase não entro mais em comunidade. Faço as entrevistas do lado de fora. Em tiroteios, não pode correr. Quem corre é alvo.

Uma coisa muito louca aqui é a relação com o crime. Já tive colega (trabalhador da área de comunicação, de carteira assinada), morador de favela, que escondeu droga pra traficantes em casa (não é uma escolha). Que já botou fogo em carro na rua porque os traficantes estavam pagando uma grana boa para quem fizesse e o cara precisava pagar a escola da filha. Já tive colega que trabalhava para a milícia recolhendo as extorsões, sem ver nada de errado nisso.

Comendo na porta da delegacia. (Foto: Arquivo Pessoal)
Comendo na porta da delegacia. (Foto: Arquivo Pessoal)
Pati ganhando flor de uma menininha que morava na rua. (Foto: Arquivo Pessoal)
Pati ganhando flor de uma menininha que morava na rua. (Foto: Arquivo Pessoal)

A convivência com a violência também é bizarra. "A gente se acostuma". Não. Ninguém se acostuma. Um amigo teve a casa invadida de madrugada por milicianos que enterraram um corpo no quintal dele. Ainda está lá. Um detalhe horrível nessa história é que o cachorro dele desenterrou o corpo e ele teve que fechar o buraco aberto pelos milicianos.

A minha rotina aqui é bem dividida. De manhã, IML (Instituto Médico Legal), cemitério, cena de crime, delegacia. À tarde, praia ou parquinho com meus filhos, sem celular, sem ver nada no noticiário, sem comentar as minhas reportagens. Dois mundos paralelos.

O que eu gosto no Rio de verdade é o contato com a realidade. Todo dia vejo o quanto sou privilegiada. Nunca passei fome, meu teto nunca despencou. Na escola do meu filho não bate tiro. Não sou vítima de racismo. Sobre isso, outro dia estava no ponto de ônibus com duas meninas da Maré e chegou uma viatura. 'Vou ter que revistar a bolsa de vocês'. Três mulheres em um ponto de ônibus, que perigo, né? As meninas tiraram tudo das mochilas. Iam dormir na casa de uma amiga, tinha roupa, calcinha. Quando ia chegar a minha vez o policial agradeceu e foi embora. Fiquei sem reação. Por que as duas moças negras, moradoras da favela, poderiam estar escondendo alguma coisa e eu não?

Entrevisto as pessoas no momento mais difícil da vida, o da morte. Até um tempo atrás achava que o melhor que poderia fazer por elas era boa matéria. Hoje entendo que isso não é mais do que a minha obrigação. Aprendi que posso ser acolhimento. E descobri isso em um momento, ao mesmo tempo, de muita dor e muita beleza.

Uma mãe morreu em casa. Bala perdida. Deixou um bebê que ainda mamava no peito. Cheguei no iml e a tia da criança gritava aos prantos que a menina, que estava em casa, chorava de fome. Eu amamento ainda (minha caçula tem 2 anos) e me ofereci pra alimentar a criança. "Ela não vai passar fome, nem que eu vá todos os dias na sua casa, a gente faz um estoque, fica tranquila, a gente vai dar um jeito". Dei meu telefone e um abraço forte. No vivo daquele caso, sem avisar a chefia, pedi ajuda da população. "Quem puder leve uma lata de leite no sbt, que eu me encarrego de entregar". Achei que ia levar bronca. Que nada. Todo mundo entrou na parada. As doações não paravam de chegar. Foi lindo de ver. Não era nada, mas era tudo. No agradecimento, nunca vou esquecer, a tia, Maria, disse "eu nunca pensei que vocês, de outra sociedade, pudessem se importar com a gente". OUTRA SOCIEDADE. Plaft. Tapão na cara. Ela tem toda a razão.

A partir daí passei a acolher. Já parei entrevista ao vivo porque a mãe que perdeu o filho precisava de um abraço. Ofereço informação, onde ir, com quem falar. Tem gente tão humilde que nem sabe que a defensoria existe. Dou meu telefone pessoal. Passo meses falando com as pessoas. Nunca deixo de responder. Percebi que muito mais do que matéria na tv, todo mundo quer ser ouvido. Gente sem voz, esquecida. Que naquele momentinho com você se sente importante porque uma repórter da televisão está dando toda a atenção.

Eu tinha tudo pra ser uma barbie, mas o Rio não deixa, essa cidade me mostra todo dia que o mundo vai muito além do meu umbigo. E isso, em tempos em que é necessário explicar o que é o trabalho infantil, é transformador.

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