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Comportamento

Aos 80 anos, ele mora em um ônibus sem motor, mas com sonho de viver na praia

Aline Araújo | 16/04/2015 11:36
José e os dois ônibus que comprou, na tentativa de vender 1. (Foto: Marcelo Calazans)
José e os dois ônibus que comprou, na tentativa de vender 1. (Foto: Marcelo Calazans)

José Pinto, de 80 anos, mora em um ônibus estacionado em terreno baldio na rua Fátima do Sul, no bairro São Jorge da Lagoa. Do veículo, ele fez casa, que chama atenção de quem passa por ali e vê o homem sentado em uma cadeira. No letreiro do ônibus, a palavra "Jesus". Na porta, uma foto do dono com uma guitarra, feita há pouco mais de dois anos, o que aumenta ainda mais a curiosidade sobre a história de quem mora ali.

Apesar da vida complicada, o senhor, que já não escuta direito e está com aparelho auditivo sem bateria, nos recebe em sua “casa” com um sorriso.

Senhor passa as tardes sentado em frente ao ônibus. (Foto: Marcelo Calazans)
Senhor passa as tardes sentado em frente ao ônibus. (Foto: Marcelo Calazans)

Ele montou uma casa completa no ônibus, com fogão, geladeira, cama e até cômoda. Nos bancos, há panelas, utensílios domésticos, roupas e caixas com memórias guardadas. José escolheu o lugar como morada.

Comprou 2 ônibus, com a ideia de vender um, motorizar o outro, e ter uma casa móvel, para morar por aí, até voltar à beira do mar, em Praia Grande (SP), onde nasceu.

A sujeira espalhada é o retrato de quem, já com a idade avançada, está desanimado com a vida, depois de perder os dois filhos e ter passado por outras tantas frustrações, com o fim do casamento e a desistência do que para ele era um “império”.

Afastado da família, hoje quem faz companhia para José são três gatos, que correram para baixo do ônibus assim que a equipe do Lado B chegou ao lugar.

“Você pode não acreditar, mas eu já fui muito rico. Fui motorista por muitos anos, depois abri o meu próprio ferro-velho. Fiz dinheiro, comprei carro, tive muita coisa, antes de deixar tudo”, garante.

Ele montou a cozinha...
Ele montou a cozinha...
... e o quarto no veículo.
... e o quarto no veículo.

Ele nasceu em Santos, litoral paulista, morava em Praia Grande e se mudou para Mato Grosso do Sul ainda novo, fez a vida por aqui. Casou, teve três filhos, uma mulher e dois homens. Diz que tocava um ferro-velho junto com os filhos e o genro, e abriu também uma lanchonete, para trabalhar ao lado da esposa. Por desentendimento, saiu da empresa de sucata, e ficou só com os lanches.

O casamento, de mais de 20 anos, acabou em 1997. "Não deu mais", resume. Conta que "se desentendeu com o genro", por diversos motivos, e  por isso o divórcio aconteceu.

“O juiz falou para mim: Seu José, fica com a casa, com o carro ou com a lanchonete... Eu respondi que não queria nada, que o carro era para o meu filho trabalhar, a lanchonete para a mãe dele e fui embora para minha terra (Praia Grande)."

No ônibus, o sonho de viver cantando estampado. (Foto: Marcelo Calazans)
No ônibus, o sonho de viver cantando estampado. (Foto: Marcelo Calazans)

Um dos filhos, Reginaldo, já morava por lá. Então, ele recomeçou morando em um trailer. “Eu cuidava dos carros do estacionamento de um banco, o mesmo onde eu recebia a minha aposentadoria”, lembra. Morou lá até o filho morrer.

A dor fez José largar tudo novamente e retornar a Campo Grande. Foi então que comprou os dois ônibus, que tenta vender até hoje, sem perder a esperança de conquistar seu motor home.

José Carlos, de 56 anos, que trabalhava na lanchonete com a mãe, sempre ia visitar o pai. Chegava, conversava, ouvia... Mas com menos de um ano e meio de diferença, seu José sofreu outra perda. O filho morreu em decorrência de infarte e com ele foi junto as cantorias do pai e o encanto pela vida. “Eu desanimei minha filha, nem tocar eu toco mais. Parei de cantar no dia em que ele morreu”.

A guitarra da foto e das cantorias está guardada. (Foto: Marcelo Calazans)
A guitarra da foto e das cantorias está guardada. (Foto: Marcelo Calazans)

Ele ainda guarda a guitarra, uma paixão até recente. Diz que a música entrou na sua vida junto com a igreja, depois da separação. Garante que já tocou por aí, "bem pouco", pontua, quando morava na praia.

O repertório era feito de canções evangélicas e da "velha guarda". Lembra que a foto com a guitarra, estampada na porta de um dos ônibus, foi feita assim que voltou para Campo Grande, com a vontade de rodar e cantar com o veiculo por aqui.

Entre muitas frases bem construídas, com lógica, de repente José "revela" conversar com Deus, talvez o único momento em que a história perde um pouco o sentido. Afirma ouvir conselhos divinos que, inclusive, o afastaram da mulherada. "Um dia, ele (Deus) disse para eu rezar em casa, me afastar da igreja e também orientou para que ficasse longe das mulheres que me rodeiam em busca de alguma coisa. Então, estou há 17 anos sem uma companheira!”, comenta.

Orgulhoso com o chapéu, guardado em uma sacola, depois da morte do segundo filho. (Foto: Marcelo Calazans)
Orgulhoso com o chapéu, guardado em uma sacola, depois da morte do segundo filho. (Foto: Marcelo Calazans)

Seu José jura que não bebe, não fuma e também não come porcaria. “Minha comida é arroz e feijão”. Ele diz não ter medo de nada, por acreditar muito na proteção de Deus.

Por mais diferente que pareça a história, uma vizinha, da antiga lanchonete e hoje uma sorveteira, confirma a veracidade da história de José, inclusive, as indas e vindas de Praia Grande. Ele virou personagem do bairro, tanto que está reportagem foi sugestão de um dos moradores da região.

Talvez a fé e as conversas com Deus sejam a maneira que encontrou de manter o sorriso no rosto e receber sempre bem os estranhos curiosos, como nós.

Apesar de ter passado por todas as dificuldades, não vejo alguém triste, mas uma pessoa sempre disposta a conversar e ainda com a esperança de morar longe, no que considera um paraíso.

“Tem coisa melhor que morar perto do mar, comer um peixinho recém tirado na tarrafa. Lá todo mundo me conhece.”

Com a mesma simpatia que nos recebeu, ele se despede.

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