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Comportamento

Avó sabia que a neta era homem e por amor escondia short saia debaixo da cama

Darci partiu, mas ainda é tudo para o neto transexual que guarda na memória o amor e apoio incondicional da avó, para que ele fosse um homem feliz

Thailla Torres | 31/07/2018 06:10
Ricardo e a avó durante o tratamento dela contra o câncer. (Foto: Arquivo Pessoal)
Ricardo e a avó durante o tratamento dela contra o câncer. (Foto: Arquivo Pessoal)

Dona Darci, à primeira vista, sempre foi uma pessoa calma, mas era só ouvir qualquer palavra ofensiva ou preconceituosa para descer do salto e expulsar, nem que fosse à vassouradas, todo mundo de casa. Foi assim que o neto Ricardo Guedes Kumm, de 28 anos, um homem transexual, cresceu vendo a avó defender a diversidade na família.

Conhecida pelo bom humor, Darci Frida Kumm descansou em fevereiro de 2014, aos 69 anos, em Dourados, após tratar um câncer terminal. Era dona de casa, uma cozinheira de mão cheia e se dedicou com amor à família até os últimos de dias vida.

Na série O que ficou de quem partiu de hoje o relato é do neto, que ao falar da transexualidade, lembra como Darci desempenhou um papel importante no seu processo de transição, mesmo sem nenhum conhecimento em relação às questões de gênero e sexualidade.

Um dos retratos preferidos de Ricardo, na companhia de Darci.  (Foto: Arquivo Pessoal)
Um dos retratos preferidos de Ricardo, na companhia de Darci. (Foto: Arquivo Pessoal)

"Ela aceitava tudo sem nem entender o que estava acontecendo. Parecia saber que eu era homem e em nenhum momento pediu para que eu me justificasse. Ela apenas me entendia e me tratava com a maior naturalidade", lembra Ricardo.

Darci o protegeu do mundo e das dores enquanto pôde. No período escolar, foi ela que o ajudou a usar bermuda ao invés do short saia obrigatório para as meninas. "Isso foi algo que me marcou muito. Foi a minha avó quem comprou bermuda para mim na escola e quando outro familiar questionava o sumiço do short saia, ela dizia que não sabia onde estava e escondíamos a bendita peça juntos embaixo da cama".

Nas recordações do neto, dona Darci parecia uma mulher a frente do seu tempo. "Nunca se importou em entrar comigo na seção masculina das lojas de roupa e quando eu quis raspar o meu cabelo, que na época o cumprimento ia até a cintura, ela foi sem questionar nada, ao contrário de alguns familiares, que sempre apontavam coisas erradas", lembra.

Há 10 anos, quando foi realizada a primeira Parada LGBT de Dourados, Ricardo pensou que naquele dia Darci questionaria sua identidade, porque saiu na capa do principal jornal da cidade segurando a bandeira colorida, mas novamente ela surpreendeu. "Apenas comemorou que eu sai na capa do jornal e guardou com carinho a edição".

Tatuagem feita no ano passado para homenagear Darci. (Foto: Arquivo Pessoal)
Tatuagem feita no ano passado para homenagear Darci. (Foto: Arquivo Pessoal)

Foi essa cumplicidade desde a infância, afirma Ricardo.  "O que ficou dela? Uma saudade imensa, principalmente, às segundas-feiras. Era nesse dia que ela não saia de casa, tínhamos que assistir juntos Hebe Camargo e eu sentava para fazer massagem em seus pés".

Em 2013, Darci foi diagnosticada com câncer, em estágio avançado. "Deram só quatro meses de vida. Mas ela conseguiu viver mais um ano". Durante o tratamento, mesmo com o cansaço, ela não perdia a disposição. "Meu pai tinha um bar na época e, mesmo careca e cansada, ela estava no bar para varrer e se distrair. Isso me fez acreditar que ela nunca iria partir".

Até expulsar cliente do bar com vassoura dona Darci conseguiu. "É um episódio que também me marcou muito. Entrou uma travesti no bar do meu pai e alguns clientes começaram a tirar sarro. Ela não aceitou e pegou a vassoura para todo mundo. Dizia que a travesti tinha direito de se divertir".

A última conversa pessoalmente com a avó foi dentro do hospital, em um diálogo alegre. "Um ficava fazendo o outro rir, por exemplo, perguntando qual dos enfermeiros ela achava mais bonito. E no último momento, só me recordo de segurar a mão dela e pedir para ela não se preocupar. Ficamos de mãos dadas e adormeci ao seu lado".

Hoje, apesar da ausência, não significa, para ele, que ela não esteja perto. "Todos os dias tenho uma lembrança dela. Em um porta-retrato está nossa foto preferida e no braço tatuei sua assinatura. Minha avó foi uma pessoa muito importante e toda vez que eu falo dela as pessoas ficam curiosas, enquanto pra mim sempre foi muito natural o jeito que ela lidava com a minha identidade e me fazia feliz. Nunca vou esquecer disso".

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