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Comportamento

Campeão no ciclismo, Gilmar ama tanto a bicicleta que até dormia na oficina

Paula Maciulevicius | 10/03/2017 06:29
"O que veio primeiro? A loja ou a bicicleta? Ah, primeiro a bicicleta, o gosto por pedalar", narra Gilmar. (Foto: André Bittar)
"O que veio primeiro? A loja ou a bicicleta? Ah, primeiro a bicicleta, o gosto por pedalar", narra Gilmar. (Foto: André Bittar)

Entre uma fala e outra, Gilmar para e atende um cliente. Mostra bicicleta, pneu, acessórios. Espera um ciclista dar uma volta pela Fábio Zahran para testar, ouve os comentários, repassa o que sabe, se despede e antes mesmo de sentar, começa tudo de novo quando a porta se abre novamente. Junto da esposa Divina, os dois pedalaram muito na vida, no sentido literal e no figurado, de quem começou dormindo dentro da oficina lá no Bom Jesus de Goiás, em 1979.

"O que veio primeiro? A loja ou a bicicleta? Ah, primeiro a bicicleta, o gosto por pedalar", conta Gilmar Elias Batista, hoje com 51 anos. Treinando desde os 13, a primeira bicicleta era a mesma com que o pai trabalhava. "Era bem simples, dois canos, mas a gente mudava o guidão... Era comum, sabe? Aquela época não tinha muita opção", recorda.

A história é muito grande e ele insiste em falar isso. Só no desenrolar da conversa que a gente entende o porquê. Seu Gilmar chora uma, duas, três vezes.

Nas fotos pela loja, os filhos ciclistas ainda crianças e como o comércio iniciou na Capital. (Foto: André Bittar)
Nas fotos pela loja, os filhos ciclistas ainda crianças e como o comércio iniciou na Capital. (Foto: André Bittar)

"Não gosto de contar tudo detalhado, é duro você começar a lembrar que não tinha nada e conseguiu atingir, assim, o que eu considero um patrimônio. Às vezes querem fazer matéria comigo e eu não quero", se explica Gilmar.

Aos 13 anos de idade, ele, o irmão e os amigos ainda não entendiam muito o que era treinar na bicicleta. A mesma turma da rua que jogava bola, migrou todinha para o esporte. E quando o irmão dele comprou a primeira Monarca, começou a pedalar com um amigo que já estava envolvido em corrida.

"Foi a primeira vez que vi esse negócio, nossa, ali eu já sabia que ia gostar, porque eu fiquei, sabe aquela emoção? De ver uma coisa e tremer e sentir que aquilo é o que você gosta?" tenta descrever. O mesmo sentimento daquela época volta aos olhos para fazê-los marejar. Sem condições financeiras, Gilmar conta que foi montando a própria bicicleta, sem marcha ainda.

Nos anos 70, o empresário de hoje contextualiza que não havia competições abertas, nem na TV. O ciclismo era resumido a grupos fechados que treinavam bem longe da rua dos meninos. "Na primeira bicicleta, eu treinava, mas ela não aguentava e toda semana tinha que trocar o eixo. Aí, quando começa a doer no bolso, você entende. Tive que cortar quadro, soldar, reduzir e tudo na maior dificuldade", lembra.

Nas primeiras imagens, a oficina onde Gilmar dormia, ainda em Goiás. (Foto: André Bittar)
Nas primeiras imagens, a oficina onde Gilmar dormia, ainda em Goiás. (Foto: André Bittar)

Na disputa dentro da categoria "pé duro", Gilmar recorda que foi descobrindo jeitos de terminar treinos e provas numa melhor performance e junto dos amigos, cada um fazia o que sabia para turbinar a bicicleta.

Desde garoto o ciclista batia ponto e chegou a trabalhar em uma loja de bicicleta da cidade. Na prática, já estava como ele define "meio profissional", com conhecimento mais avançado. Aos 18, foi dispensado do Exército por excesso de contingente e desempregado, embarcou na proposta da irmã e do cunhado, de abrir uma loja de consertos de bicicleta.

"Botei minha cama lá. Era um espaço 3 por 3. Eu dormia e trabalhava na oficina. É uma história triste, que só de lembrar eu choro. A gente começou lá, em 1979, neste endereço", aponta para a foto. Devagarzinho, foram chegando clientes. "Na época, pintava com bombinha de matar moriçoca", ri da memória.

Um amigo de lá que tinha vindo pedalar por aqui quem trouxe o nome de Gilmar. Nos anos 80, empresas investiam em equipes de ciclismo para competição e ele foi convidado a fazer parte da Perkal. "Era salário fixo e mais premiações. Eu trouxe as coisas que tinha, minha mulher e meu filho de 1 ano. Chegamos aqui e compramos a casa do União, que a gente tem até hoje", conta.

O auge das competições foi de 1986 a 1994, incluindo títulos municipais, estaduais, nacionais e internacionais. Gilmar também treinou com a seleção brasileira. Junto da mudança, vieram as ferramentas básicas que ele deixou guardada num ponto pequeno do que hoje é a Avenida Fábio Zahran. Ofereceram a ele de comprar, Gilmar aceitou e continua ali até hoje.

Ele e Divinha, a esposa, pedalaram e muito nesta vida. (Foto: André Bittar)
Ele e Divinha, a esposa, pedalaram e muito nesta vida. (Foto: André Bittar)

Das viagens, trazia as peças para montar bicicletas e vendê-las aos ciclistas do Estado. "Aqui era tudo de japoneses, a frente da loja era pequenininha", recorda. O maior sonho que ele tinha, também foi realizado. Gilmar queria montar uma equipe inteira, chegou a fazer e viu profissionais que ele formou sendo contratados pelo São Caetano.

"A gente ganhava quase tudo. Foram inúmeras vitórias minhas. As provas mais importantes mesmo, mas fica difícil ganhar muito, tantos anos. Em 2013 ainda ganhei, mas hoje treino cada vez menos, vou só como passeio", brinca.

A dedicação nunca foi exclusiva aos treinos. Gilmar dividia o guidão também com a loja, junto da família e assim criou os três filhos. O primeiro deles é professor, tem doutorado e os outros dois, se dedicam à bicicleta e principalmente a estudar a tecnologia que hoje a molda.

"O que é a bicicleta para mim? Rapaz... Acho que não tem palavra, é algo que está dentro da gente, de mim. Tudo o que eu tenho veio com ela, por ela. Não tenho palavras... 'Você é apaixonado? Você gosta?' Tudo. É o meu viver, dos meus filhos, da minha mulher, dos meus funcionários. Primeiro foi paixão, depois realização e é assim, eu venho para cá todos os dias, 31 anos e se me perguntar: 'você enjoa'? Eu digo não, porque eu gosto demais", narra.

Nem para casa na hora do almoço, Gilmar vai. Come de marmita lá mesmo. E se não fosse a entrevista, a clientela que aproveita o intervalo de expediente teria lhe batido à porta. Gilmar nunca come comida quente e também diz que não vê a hora passar. "A minha alegria está aqui".

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