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Comportamento

Depois de descarregar a arma em rival, crochê virou recomeço para Valdinei

Preso na Segurança Máxima, hoje ele faz parte do grupo que produz ursinhos, bonecas e outros brinquedos feitos com linha e agulha

Thailla Torres | 21/10/2019 06:21
Preso desde o ano passado, crochê foi transformação dentro do presídio à espera de liberdade. (Foto: Marcos Maluf)
Preso desde o ano passado, crochê foi transformação dentro do presídio à espera de liberdade. (Foto: Marcos Maluf)

O processo na Justiça mostra quanto foi violento o crime após uma desavença no trabalho. Aos 28 anos, Valdinei não nega que atirou muitas vezes contra o colega, depois de “brigas e ameaças”. Com pena para cumprir até 2022, ele se diz arrependido. Mas a vontade de voltar no tempo não dá conta do relógio que parece parar dentro da cela Penitenciária de Segurança Máxima de Campo Grande, por isso, ele usa o crochê como trabalho e exercício de paciência à espera da liberdade.

Mais do que um passatempo, fazer crochê acalma, alivia o estresse e pode ser um grande aliado para o bem-estar. Dentro do sistema prisional, também pode significar um instrumento para diminuir o tempo de cadeia e garantir o sorriso de uma criança. Metade do que é produzido em crochê pelos presos é doado para instituições públicas de ensino e vira até brinquedo.

Recentemente, a Agepen (Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário) doou 32 peças em crochê para a Escola de Educação Infantil Tia Eva, no Jardim Seminário. Tinha bola, bicho, boneca...tudo feito artesanalmente e entregue à 16ª instituição beneficiada com o projeto realizado dentro do presídio.

O trabalho também  pode significar um instrumento para diminuir o tempo de cadeia. (Foto: Marcos Maluf)
O trabalho também pode significar um instrumento para diminuir o tempo de cadeia. (Foto: Marcos Maluf)
O trabalho é feito com materiais entregues pelos agentes em celas. (Foto: Marcos Maluf)
O trabalho é feito com materiais entregues pelos agentes em celas. (Foto: Marcos Maluf)

O trabalho para Valdinei iniciou depois de ver um dos presos na produção dos brinquedos. “Eu via os outros fazendo e tentei aprender, eu vi que eles estavam animados e o povo lá fora gostava, minha família também gostou, mas como eu não tinha condições de comprar direto decidi fazer”.

E saber que ajudou alguém com o crochê alivia o tormento de ficar à espera para andar livre nas ruas, afirma. “Eu nem vejo a hora passar”.

O problema, segundo ele, é que quem sabe do homicídio o considera um criminoso sem chances. Nos comentários que ele já ouviu, seu crime é potencializado pela valorização da pena sem fim. “Falam aí fora que a gente é bandido, monstro, que tem que morrer aqui dentro”, comenta.

Tem gente que não acredita na sua mudança, mas Valdinei jura que dá passos dentro da cadeia por ela. “Eu sei que estou fazendo algo melhor para outra pessoa”, diz se referindo aos brinquedos doados. “E quero sair daqui para continuar minha vida”, diz.

Tem quem julgue a escolha pelo artesanato, mesmo que o trabalho alivie a ansiedade ou traga a remissão. “Fazem piadinhas por ver um homem fazendo crochê, mas hoje eu nem ligo, sento e faço os bichinhos”.

Os bichinhos confeccionados são vendidos pelos detentos e também doados para crianças da cidade. (Foto: Marcos Maluf)
Os bichinhos confeccionados são vendidos pelos detentos e também doados para crianças da cidade. (Foto: Marcos Maluf)

O trabalho é feito dentro da própria cela. O material é doado pelo presídio e o resultado é dividido. Presos também ficam com os brinquedos produzidos para doar aos familiares nos dias de visita ou até para que comercializem.

Mas o preconceito e a crença de que o encarceramento é “pouco para bandido” foram desafios para a criação do projeto que hoje conta com 30 presos participantes. “Ele (Valdinei) está preso, cumprindo a pena dele, mas, às vezes, as pessoas acham que ele deve ser mais penalizado do que já estar encarcerado. Mas eu penso ao contrário, eles têm que ter a chance de mudar de vida e devolver uma coisa boa para sociedade”, explica Vinicius Saraiva de Oliveira, de 37 anos, agente penitenciário e idealizador do projeto “Educação Lúdica com Brinquedos Pedagógicos” no presídio.

Por isso, Vinicius, que também é formado em História e Educação Física, se tornou um insistente e prega a arte dentro da cadeia como instrumento de transformação, independentemente do crime cometido. “Eu não entro na ficha de ninguém selecionando quem vai fazer o artesanato. Nessa hora eu esqueço o que eles cometeram e, como agente penitenciário, me dedico apenas a ressocialização. E isso é muito importante para o processo de mudança até a liberdade”.

Vinicius fez estágio em creches da cidade e percebeu a falta de brinquedos duráveis. Como agente penitenciário viu um dos internos fazendo brinquedos coloridos de crochê, utilizando a técnica de artesanato amigurumi, e teve a ideia de fundar um projeto que aproximasse o artesanato dos presos.

Recentemente um EMEI recebeu 32 amigurumis. (Foto: Marcos Maluf)
Recentemente um EMEI recebeu 32 amigurumis. (Foto: Marcos Maluf)
Vinicius, agente penitenciário que idealizou o projeto. (Foto: Marcos Maluf)
Vinicius, agente penitenciário que idealizou o projeto. (Foto: Marcos Maluf)

Após uma conversa com a direção, o projeto foi aprovado. O objetivo, segundo Vinicius, nunca foi lucro, mas aprendizado. “A ideia desde o início era produzir os bichinhos para doação e com isso trazer ocupação para esses homens”.

Com dois novelos de linha, a regra é fazer um boneco para doação e outro para que fique com o preso. Atualmente, eles estão na produção de bonecos para o Natal que também serão comercializados em feira do judiciário no fim do ano.

Vinicius é quem imprime modelos e mostra como pode ser feitos os brinquedos que são preenchidos com arroz. Para ele, as unidades prisionais tem um papel fundamental na transformação dos presos e, por isso, ela não desiste dos projetos. “Tem gente que julga, não acredita na mudança, mas eu acredito e como agente luto por isso. E a recompensa está na ligação das diretoras que agradecem os brinquedos e contam a felicidade das crianças”, conclui.

Outros projetos - Além da ação com crochês realizada dentro da penitenciária, outras iniciativas são desenvolvidas, como como o projeto Arte com Pneus, que transformam pneus descartados, em espaços para diversão.

Em unidades prisionais de vários municípios são cultivadas hortaliças que são destinadas à população carente e a instituições. Em alguns presídios são produzidos pães servidos em creches e escolas. Há também montagem de cadeiras de rodas para serem distribuídas gratuitamente a quem precisa, além da mão de obra de internos em reformas de prédios públicos, como delegacias, escolas e entidades sociais.

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Brinquedos entregues em escola de Campo Grande. (Foto: Assessoria Prefeitura)
Brinquedos entregues em escola de Campo Grande. (Foto: Assessoria Prefeitura)
Criança olhando brinquedos que foram doados. (Foto: Assessoria Prefeitura)
Criança olhando brinquedos que foram doados. (Foto: Assessoria Prefeitura)
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