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Comportamento

'Dono' dos carros de boi de MS, João é famoso e diz que viver já é felicidade

Paula Maciulevicius | 27/03/2014 06:26
“Se eu sou feliz? Uai. E quem não é? Só a pessoa viver já é uma felicidade”. João Artesão, dono dos carros de boi, donos destas palavras. (Fotos: Marcos Ermínio)
“Se eu sou feliz? Uai. E quem não é? Só a pessoa viver já é uma felicidade”. João Artesão, dono dos carros de boi, donos destas palavras. (Fotos: Marcos Ermínio)

Rua Abrão Júlio Rahe, bairro Santa Fé, Campo Grande. A casa não tem erro para achar, é uma de alvenaria onde tem um Gol branco estacionado. Com duas batidas de palma, lá vem um senhor de cabelos brancos, camisa aberta, bermuda e chinelos. ‘Seo’ João Artesão em pessoa. Pergunto se a gente conversar. “Só se for agora”. Pode mostrar seu artesanato? “Só se for muito”. É assim, junto de um cumprimento jovial – de batida de mão aberta seguido dos dedos fechados – que se é recepcionado por um dos 'donos' do artesanato daqui.

“Vou por muito trabalho ‘bunito’ aqui. Vamos por esses. Esse burrinho faz o maior sucesso” e assim organiza todas as dezenas de peças que pega num quartinho para por no quintal. João Artesão é uma figura. A cada duas palavras solta uma gargalhada e antes mesmo que a gente comece a interrogar, ele quem começa. “Sou de longe, de um estado que se chama Alagoas. Mas me pergunta, quanto tempo estou aqui? Tem só 50 anos, isso em Campo Grande, no Mato Grosso tem mais de 50. Me pergunta por que. Vim trabalhar para sobreviver, porque lá não dava”.

Ele mesmo pergunta, ele mesmo responde. Ele mesmo dá risada. Mas não sozinho, a gente acompanha. O sotaque permanece o carregado, onde tem ‘o’, ele usa ‘u’, o ‘r’ é arrastado como quem dança um xote com as letras. A alegria que vem de dentro é tamanha que não importa quantos dentes ainda tenham na boca. O negócio é sorrir com a alma. “Tenho muita coisa para responder, pergunta o que você quiser. Quando eu era guri, eu brincava com essas coisas, mas espera aí. Deixa eu passar um pente no cabelo senão sai muito feio na foto”. E lá vai ele casa adentro.

O quintal é rodeado de verde. Uma árvore faz sombra ao puxadinho que ele ergueu como sua oficina. Para se esconder do calor, uma colcha de retalhos faz as vezes de cortina. Por ali, aos olhos dos leigos, o que tem não passa de pedaços de madeira que nada servem até que ele transforme em arte.

“Esse tem 20 anos, ele era dessa grossura, mas foi ficando assim, de tanto amolar, magrinho, magrinho. Igual novo que envelhece? Vai se acabando aos poucos...”
“Esse tem 20 anos, ele era dessa grossura, mas foi ficando assim, de tanto amolar, magrinho, magrinho. Igual novo que envelhece? Vai se acabando aos poucos...”

João Artesão volta ao cenário, agora de cabelo penteado, camisa abotoada, para continuar a sessão de perguntas e respostas entre João e o Artesão. “Pergunta a data que eu nasci? 3 de dezembro de 1937. Aonde? Em Santana do Ipanema”.

Hoje com 76 anos, ele conta que saiu de Alagoas para o Pantanal em 1958. As datas são tão marcantes que ele se recorda, se duvidar, até a hora em que chegou a tal lugar. Veio para trabalhar em fazenda de gado. “Roçava, arrumava a cerca e ajudava a tirar leite. Eu ajudava viu? Eu não era de tirar leite não”.

Quando 1965 chegou, ele veio para Campo Grande, trabalhar como guarda noturno. Mesmo ano em que comprou o terreno onde construiu a casa e todos os carros de boi que já saíram de suas mãos.

 “Meu pai antigamente era carpinteiro e deixava as ferramentas, eu fui aprendendo. Depois de 40 anos que virei artesão eu nem sabia que era esse o nome. Artesão. Para mim era carpinteiro de tão sabido que eu era”, conta.

E quem questiona que o artesanato dele não seja serviço de carpintaria? Entre o serrote de madeira, o esquadro, martela, grosa e facão. Qualquer madeira nas mãos de João vira peça. Vira decoração. Vira natureza na palma da mão.

“É carro de boi, sucuri, tucano. Eu não desenho, eu risco, gosto e faço. Meu trabalho é muito vendido. E da onde que vem? Vem da cabeça, vem de pensar, vem da cuca”, justifica a inspiração. Creio que os anos vividos no Pantanal lhe trouxeram sustento e inspiração.

Os anos de trabalho são contados pelas palavras, pelas rugas e pelas mãos, tanto quanto pelas ferramentas. ‘Seo’ João tem as mãos de quem faz, de quem põe a madeira a talhar, assim como o serrote. “Esse tem 20 anos, ele era dessa grossura, mas foi ficando assim, de tanto amolar, magrinho, magrinho. Igual novo que envelhece? Vai se acabando aos poucos...”

Se não fosse poeta de madeira, João poderia muito bem era fazer artesanato com as palavras. E fazer das letras, arte pelas próprias mãos.

Reconhecido pelo talento nato, ele mostra a medalha “Conceição dos Bugres”, dada pela Assembleia Legislativa, com orgulho. “Pergunta de quem é? É do garoto. Do garoto João Manoel da Silva”, diz.

Casado com Aparecida Pereira da Silva, teve três filhos. Apenas uma “dona”, como narra, vingou. Os outros dois morreram sem nem antes abrir os olhos neste mundo. De saudade, tem um pouco do Nordeste. Enquanto o pai ainda era vivo, voltou por duas vezes à terra natal. “Meus irmão telefonaram me perguntando quando que eu vou lá. Não sei, uma hora eu vou”, responde. A última visita já faz 40 anos. Antes de João virar João Artesão.

“Se eu sou feliz? Uai. E quem não é? Só a pessoa viver já é uma felicidade. Eu adoro Mato Grosso, Nossa Senhora, parece que eu nasci aqui. Parece que eu estou no céu. Todo mundo que vem aqui, gosta. Sabe por quê? É bom demais”.

Se não fosse artesão de madeira, João poderia muito bem era fazer artesanato com as palavras. E fazer das letras, poesia pelas próprias mãos.
Se não fosse artesão de madeira, João poderia muito bem era fazer artesanato com as palavras. E fazer das letras, poesia pelas próprias mãos.
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