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Comportamento

Guardado por 30 anos, enxoval é baú da felicidade de mulher que nunca se casou

Paula Maciulevicius | 12/02/2014 06:59
O baú vira caixinha de surpresa para a senhora que não se lembrava do que havia guardado numa vida que ficou em cima do armário. (Fotos: Cleber Gellio)
O baú vira caixinha de surpresa para a senhora que não se lembrava do que havia guardado numa vida que ficou em cima do armário. (Fotos: Cleber Gellio)

Em meio à poeira, traças e marcas do tempo, que não tem piedade de ninguém, está o passado que nunca foi o presente e nem tampouco seria o futuro de Rosa. O destino ou talvez suas próprias escolhas não a deixaram usar nada do enxoval de casamento que permaneceu guardado por mais de 30 anos no baú que ela chama de felicidade.

Aos 63 anos, Rosa Faustino Fogaça espera ansiosa para abrir o tal baú. De madeira, pesado, grande e em cima do armário. Ela, por sua vez, estava pronta. Não sei explicar o porquê, mas para nós aceitou abrir o passado guardado. Nem a pedido da sobrinha e afilhada ela tinha aceitado.

“Não tem problema, pode deixar que eu limpo”, diz a sorridente senhora ao nosso fotógrafo. “Nem lembro mais o que tem, agora até eu estou ansiosa. Desde que coloquei aqui, olha quanto tempo faz? Nunca mais abri”.

Ela justifica: o enxoval era intocável pela dificuldade em tirá-lo de onde ficou nas últimas três décadas. “Eu era nova, tinha 18, 19 anos, e comprava à prestação. A gente não tinha dinheiro e ia comprando e guardando. Eu tinha um monte de amigas e todo mundo achava que ia casar. Elas casaram, como eu nunca casei, ficou guardado”, argumenta.

Sem nem pensar nas emoções remexidas, ela escancara o que nunca mostrou a ninguém.
Sem nem pensar nas emoções remexidas, ela escancara o que nunca mostrou a ninguém.
Sem nem saber se o que ficou intocado por ela, sobreviveu à poeira e às traças.
Sem nem saber se o que ficou intocado por ela, sobreviveu à poeira e às traças.

Baú de madeira, cadeado rompido, história comida pelo tempo. Antes de qualquer olhadinha, ela busca um paninho para limpar. Era preciso. Afinal, é a poeira de uma vida que ficou guardada. Sem nem pensar nas emoções remexidas, ela escancara o que nunca mostrou a ninguém, prevenindo “eu não sei se está inteiro ainda”.

O baú vira caixinha de surpresa para a senhora que não se lembrava do que havia guardado para usar, numa vida que ficou em cima do armário. “Isso daqui? Nem vou contar, é que um tive namorado e ele me deu de presente e eu guardei, foi num final de ano. Eu nem lembrava mais, olha isso aqui?” . O entusiasmo dela levava a crer quem ouvia de longe a conversa que Rosa abria um baú de brinquedos novos.

Talvez para ela, o olhar fosse esse. Para nós, era uma porção de pertences confinados durante anos. O tal presente do namorado estava em uma caixa. Era a escova de cabelos, um espelho, o pente e um cartão. Apesar da felicidade em reencontrar o que um dia ela mesma abandonou, Rosa não se via naquilo.

“Por quê baú da felicidade? Você lembra do Silvio Santos? Eu tiro sarro de mim mesma, esse é meu baú”, conta.

“Eu nem lembrava mais, olha isso aqui?” E de repente a conversa vira um monólogo, em que ela fala e o passado guardado só ouve.
“Eu nem lembrava mais, olha isso aqui?” E de repente a conversa vira um monólogo, em que ela fala e o passado guardado só ouve.

Camisola, anágua, pano de prato, caminho de mesa, toalha de mesa, de banho, lençol, colchas, tecidos e confecções que nem se usam mais, mas seriam um baú de tesouros, se novos, para uma noiva prestes a se casar. “Esse dá para enfeitar a casa. Olha, isso era bibelô, que judiação. Não é do seu tempo, mas olha que bonitinho”, comenta consigo mesma.

Da terceira peça em diante, viramos meros espectadores de uma senhora conversando com o passado, sobre uma vida nunca experimentada . O avental, assim como uma parte do enxoval, estava estragado, mas havia o que pudesse ser salvo. “Vou lavar e botar tudo de molho, ver o que dá para aproveitar”.

Além dos itens comprados, tinha também o que foi feito de próprio punho, por Rosa, ou pela mãe. “O crochê foi minha mãe que fez, esse está inteirinho, só está sujo. Tem ideia de um negócio desse? Eu nunca vi isso na minha vida, que bom que fui abrir! A gente comprava com sacrifício, eu nem sabia quanta coisa mais tinha aqui dentro”, afirmava frase por frase, uma seguida da outra.

“É verdade, eu nunca casei, ninguém quis”, diz rindo de si mesma. A verdade não é essa. Talvez o motivo tenha ficado guardado junto com o enxoval. O namorado que viria a ser o noivo morreu em um acidente de carro. Mas a solteirice não veio em razão do sentimento por ele. Antes mesmo de tudo acontecer, os sonhos que tinha durante a noite pareciam lhe trazer a realidade: ela nunca iria se casar.

“Eu sempre sonhava que eu chegava de noiva e ele não chegava. Então eu tinha certeza de que não ia dar certo. Eu tinha esse sonho, era engraçado porque parecia uma premonição”, descreve. Como católica fervorosa, a senhorinha pedia para que, se não fosse dar certo, o melhor era nem ter. “E com ele, eu não achava que ele era sabe? Eu nunca tive paixão. Casar, também não seria com ele. Quando tem que acontecer, acontece”.

Os anos passaram e com eles vieram obrigações que Rosa tomou para si. “Minha mãe ficou doente e eu achava que tinha que cuidar dela, ela morreu, depois eu cuidei do meu pai e fiquei cuidando deles. Sabe, como eu nunca mexi nisso, ficou ali, guardado”, aponta para o baú.

Para reforçar a opção, ela assinala que as pessoas mais importantes foram o pai e mãe. Pergunto se ela se arrependeu ou lhe veio qualquer sentimento ao remexer o que ficou intacto.

“Nada. Não senti nada. O tempo, ele se encarrega de qualquer coisa e isso faz muito tempo. Agora é lavar e colocar no baú de novo por mais 30 anos. Mas acho que não chego até lá”. Os argumentos foram ditos, as justificativas dadas, mas o fato é que Rosa manteve e quer continuar a guardar o enxoval no baú da felicidade, quer ter por perto a vida que nunca foi sua, o presente e o futuro que não lhe aconteceram.

O tempo se encarrega de qualquer coisa. Depois de lavado, enxoval volta para o baú da felicidade, quem sabe, pelos próximos 30 anos.
O tempo se encarrega de qualquer coisa. Depois de lavado, enxoval volta para o baú da felicidade, quem sabe, pelos próximos 30 anos.
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