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Comportamento

Jacaré quase morreu para salvar menina de choque e tinha respeito até de gangue

No Nova Lima, a figura virou "lenda", mas isso não poupou o personagem do bairro de atropelamento e morte.

Thailla Torres | 06/05/2019 07:31
Uma das últimas fotos de Jacaré antes de sua partida. (Foto: Arquivo Pessoal)
Uma das últimas fotos de Jacaré antes de sua partida. (Foto: Arquivo Pessoal)

A história foi um pouco injusta com o Nelson Keiti Gomes Nagase. O Jacaré, como ficou conhecido na cidade, especialmente no Bairro Nova Lima, foi dono de uma comunicação amorosa com a periferia, mas uma fatalidade o fez perder os sentidos cedo demais. Por isso, ele não sobreviveu para contar a própria história.

Cinco anos depois de sua morte, o professor de Artes Visuais Paulo Cesar Duarte Paes, de 60 anos, revisita os momentos da maior amizade que já teve na vida.

Jacaré madrugava para ajudar os pais e manter as portas que nunca fechavam na lanchonete “Sem Nome”, na Avenida Afonso Pena quase esquina com a Rua 14 de Julho, isso ainda década 80. Tinha uma intelectualidade nata, era íntimo dos livros e amava o cinema, afirma Paulo.

Paulo nunca esqueceu o amigo Jacaré. (Foto: Kísie Ainoã)
Paulo nunca esqueceu o amigo Jacaré. (Foto: Kísie Ainoã)

“Eu o conheci no Cineclube, que tinha uma tradição de estudo do universo cinematográfica e intelectual. Mas nós queríamos levar o cineclube para o povo”, lembra Paulo que largou o emprego de vendedor para entrar de cabeça em um projeto com Jacaré. “Criamos então uma chapa, um grupo de inúmeros amigos e começamos a passar filmes no Bairro Nova Lima”, completa.

Á época o projeto chamava-se “Periferia Viva”, desenvolvido pelo Cineclube em parceria com o MEC (Ministério da Educação) e o governo do Estado. Na primeira sessão do Nova Lima foi exibido o filme “O homem que virou suco”, de João Batista de Andrade. “Na cena de sexo entre José Dumont e Célia Maracajá, algumas mulheres se revoltaram e entraram na frente da projeção dizendo que aquilo era uma vergonha”, lembra.

Apesar do susto logo na primeira exibição, o Cineclube ganhou o coração dos moradores em pouquíssimo tempo numa comunidade que não tinha opções de lazer. E o projeto continuou atuando para promover a interação o povo e a cultura da comunidade.

Além do cinema Jacaré e Paulo atuaram como professores leigos na década de 80 na escola Lino Villachá, construída em mutirão no bairro Nova Lima, no início dos anos oitenta. Como trabalhavam com cinema no bairro e havia uma falta de professores na região, eles eram chamados pela diretora para ministrar diversas disciplinas. “Era uma escola velha, com pintura desgastada, mas que tinha vida com os alunos e as mães. Jacaré era adorado nessa escola, assim como no bairro inteiro”.

Jacaré conquistava muitas pessoas. (Foto: Arquivo Pessoal)
Jacaré conquistava muitas pessoas. (Foto: Arquivo Pessoal)

A emoção sincera na relação com o povo fez Jacaré ser respeitado até por gangues que causavam problemas na comunidade. Uma das brigas se tornou inesquecível nos fundos da escola. “Dois adolescentes com olhar de ódio lutavam com facas caseiras em uma das mãos e um pano na outra. Uma das facas quase acertou o rosto de um deles que conseguiu se desvencilhar jogando o corpo para trás”, descreve Paulo.

“Só uns poucos corajosos assistiam a cena de longe quando Jacaré chegou e falou em tom professoral: - Parem com isso e me deem essa faca! Segurando uma das facas pelo fio da lâmina”, comenta, lembrando que todos sentiram um arrepio ao imaginar a faca cortando os dedos do professor.

Havia na região duas gangues que brigavam para domínio do território. Uma delas, chamada de gangue do Nova Lima, dominava as proximidades do Hospital São Julião e Jardim Anache. A outra ficava na região mais alta, nas proximidades do Corredor da Matel e conhecida como Gangue do Corredor.

Mas Jacaré era conhecido e muito respeitado pela comunidade, muitas vezes sendo convidado para comer e até dormir nas casas dos moradores. As exibições de filmes, apresentações teatrais, musicais e de dança produziam um encantamento em toda a comunidade que antes não tinha contato com a arte.

Recado deixado por ele 1985. (Foto: Arquivo Pessoal
Recado deixado por ele 1985. (Foto: Arquivo Pessoal

Na briga, um dos adolescentes era Ramonzinho cujo pai Ramon, tinha um bolicho e nos finais de semana promovia bailes dançantes com polca paraguaia. “Ramonzinho, que era da gangue do Corredor, com expressão de ódio e já sangrando de uma facada que levara no braço, segurava o cabo da faca enquanto Jacaré segurava a lâmina. Ramonzinho hesitou, e com olhos lacrimejados olhou para Jacaré, largou a faca, seu adversário saiu correndo e o que poderia ser mais uma tragédia acabou apenas como um conflito escolar”.

Paulo não tem dúvidas que a briga o que deteve a faca foram anos de atividade criadora junto à comunidade produzindo respeito e sentimentos naquele povo. “Os meninos da gangue admiravam e respeitavam muito o Jacaré”.

O projeto foi realizado até 1989 na região do Nova Lima quando Jacaré se apaixonou e mudou-se com a companheira para região do Caiobá. Ano em que ele quase morreu, mais uma vez, para salvar uma criança subiu numa das torres de alta tensão do bairro. Mas na hora que pegou a criança nos braços ela bateu o pé no fio e os dois caíram da torre após serem eletrocutados. “A criança com o tempo ficou ótima, apesar de algumas marcas. Ele nunca mais foi o mesmo”, lembra o amigo.

O sorriso que ficou marcado nos amigos. (Foto: Arquivo Pessoal)
O sorriso que ficou marcado nos amigos. (Foto: Arquivo Pessoal)

Jacaré ficou muitos anos sem falar e fazer suas atividades. Com o passar do tempo melhorou os movimentos e voltou a andar de bicicleta, mas nunca mais foi o Jacaré iluminado que o povo conhecia. Permaneceu até o fim de sua vida com semblante apagado, quietinho e silencioso. “Apesar de toda dificuldade ele não perdeu sua doçura, principalmente na comunidade. Ainda hoje, se você for no Nova Lima, certamente os mais velhos saberão falar quem era o Jacaré”, descreve o amigo.

Jacaré viveu até 2014 quando foi atropelado na Avenida Fábio Zahran. “Ele saiu para visitar um amigo. As pessoas diziam para ele não andar sozinho, mas ele acabou indo”.

Ao final da entrevista o sorriso de Paulo se une aos olhos marejados por lembrar do grande amigo. Quando questiono o que ficou de quem partiu, o sorriso é ainda maior. “Herdei dele uma capacidade de comunicação sensível e amorosa. Eu acho que precisava mais, porém o pouco que herdei fez toda diferença. Jacaré não tinha muita preocupação com as coisas, era um homem solto, conquistava as mulheres, as crianças e a comunidade. Tudo isso porque tinha facilidade de se relacionar sensivelmente e que faz falta nos dias de hoje”, finaliza.

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