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Comportamento

Karen decidiu tentar de novo após perder irmão e pai em ano da covid

Quinze anos depois, com dois filhos e luto pelo pai e irmão que se foram em 2020, ela realiza o sonho de fazer Medicina

Thailla Torres | 15/01/2021 08:34
Pai se foi, mas era um dos maiores incentivadores de Karen (Foto: Arquivo Pessoal)
Pai se foi, mas era um dos maiores incentivadores de Karen (Foto: Arquivo Pessoal)

Resiliência é palavra chave que muitos amigos têm usado quando ouvem a história da química Karen Paroni Ratier. A mulher que, aos 32 anos, mãe de dois filhos e vivendo um luto difícil após perder o irmão e o pai no mesmo ano, decidiu unir forças para começar de novo e realizar um sonho dela e do pai: cursar Medicina.

A profissão sempre foi um sonho, desde menina, mas Karen trilhou caminhos diferentes nos últimos 15 anos. Em 2020, fortalecida pela família, ela decidiu encarar a prova para Medicina, mas o ano difícil surrou, por um momento, suas expectativas.

Em agosto, ela se despediu do irmão que faleceu após um AVC. Em dezembro a covid-19 levou o pai. Duas despedidas em pouquíssimos meses que fizeram o coração de uma irmã e filha doer. Karen chegou a cogitar a desistência, mas lembrou-se da força da família, principalmente, da esperança que o pai, mesmo de dentro da UTI (Unidade de Tratamento Intensivo), conseguiu transmitir quando ela foi realizar a prova. Nesse momento, viu que não cabia mais na vida a desistência, estava na hora de cuidar novas vidas.

A história é longa, mas ela faz questão de contar em detalhes para fortalecer outras pessoas que passam por situações parecidas. E tem mais: Medicina para Karen não é só uma nova profissão ou título. Ser médica pra mim não é negócio, não é ser doutora, não é fábrica. Ser médica é ter conhecimento para salvar pessoas que estão em situação de vulnerabilidade social, econômica, de saneamento, de acolhimento”, pontua.

Karen entre os pais (Foto: Arquivo Pessoal)
Karen entre os pais (Foto: Arquivo Pessoal)

Ela conta que sempre foi bolsista numa escola particular. Tinha as melhores notas enquanto a mãe era inspetora de alunos na escola. “Tive uma vida agitada por lá, mas por ser de classe econômica inferior, sofri muito bullying por ser pobre, por ser gordinha, usar óculos grossos, ser nerd da turma. Então sempre me apeguei nos estudos como um refúgio".

Desde menina gostava de cuidar das pessoas, o que sempre a levou para o sonho da Medicina. Em 2003, quando chegou o momento de prestar vestibular, Karen diz que “travou”. “Meus pais e professores sempre me viram como a menina prodígio dos estudos. Eles não tinham grana, eu precisava passar na Federal. Eu não suportei me colocar num lugar em que eu pudesse falhar e não passar. Então decidi prestar para Química (bacharelado) .

Karen passou em 3° lugar na UFMS, cursou os quatro anos, e da turma de 25 que entrou, foi uma das quatro que se formaram. No último ano descobriu a paixão pelo ensinar. Saiu da faculdade decidida a lecionar, fez licenciatura em Química, e passou a dar aulas.

E, em 2016, tomou posse em um concurso. O trabalho, no entanto, rendeu, segundo Karen, momentos difíceis, depressão, síndrome do pânico e ansiedade até a exoneração em 2019. O caso foi parar na justiça.

Foi nessa etapa que Karen se viu frustrada e conversou com o marido sobre o sonho de cursar Medicina que ficou para trás. “Ele só falou: 'estuda. Estuda e passa. Você sempre correu atrás de tudo o que quis, e não vai abrir mão de nada mais', me dizia”.

Karen celebrando aniversário da filha (Foto: Arquivo Pessoal)
Karen celebrando aniversário da filha (Foto: Arquivo Pessoal)

Ali começou a saga para alcançar o sonho. Em 2020 ela o ajudou na publicidade, fez rifa, vaquinha, promoções papelaria de festa para conseguir dinheiro e comprar cursinho online. “E eu estudei, na verdade ainda estudo, de madrugada, depois que as crianças iam dormir. Lucca tem 5 anos e a Anna Lua tem 2 anos, então preciso dar atenção a eles quando eles estão acordados".

Karen soube de uma faculdade em Cubatão (SP) e seu programa de bolsas. “Vi o site e que se encaixava no perfil que eu procuro, que é atendimento humanizado e voltado à comunidades carentes. Foi pesado pagar R$ 300 de inscrição, mas paguei. A USJT é a segunda melhor universidade particular do Estado de São Paulo”, diz.

A prova estava agendada para o dia 06 de dezembro de 2020, porém, dia 27 de novembro o pai foi internado com covid-19 e dia 29 ele foi intubado. “Eu não queria mais ir. Não podia deixar o grande amor da minha vida numa UTI e ir. Mas minha mãe disse que o sonho não era só meu, era nosso e que ele ficaria triste se acordasse e soubesse que eu faltei a prova”.

Foi então que a viagem ocorreu, na companhia dos filhos, quatro malas, metrô e ônibus para chegar até o destino. No caminho, Karen ainda precisava receber, interpretar e mandar os boletins médicos do pai para os irmãos e minha mãe. “E a cada piora dele, o desespero era maior, pois eu estava longe e não podia voltar.”

Karen fez a prova e voltou para Campo Grande. Dois dias depois do Natal viveu uma despedida dolorosa. “Não faz ainda muito sentido viver num mundo em que ele não está. E desde então tenho vivido apenas o luto”.

Até que ontem, 14 de janeiro, saiu o resultado. “Eu fiquei feliz, mas não consegui comemorar. Meu pai não pôde ver isso. Mas ele deve estar me vendo, lá do céu, junto com meu irmão que também faleceu em 2020, de um AVC”.

Agora ela está organizando os documentos, vai reativar a rifa pra comprar as passagens de ônibus para ir se matricular no dia 20 de janeiro. Mesmo com saudade batendo na porta todos os dias, Karen sente que precisa seguir em frente e tentar de novo.

Karen com o marido e os filhos (Foto: Arquivo Pessoal)
Karen com o marido e os filhos (Foto: Arquivo Pessoal)

“Eu vou, preciso ir. Por mim, pelo meu pai, pelos meus filhos, por tanta gente que não tem médicos que realmente queiram exercer por amor e não por dinheiro e vêem a Medicina como 'business'. Dói porque fazer a faculdade significa deixar minha mãe e minha irmã aqui. E elas estão bastante fragilizadas. Mas fazer Medicina é também atender, acolher, aprender, ajudar, tratar e transformar vidas de quem não tem R$ 300 para pagar numa consulta particular”.

Karen diz que não pensa em abrir consultório. “Penso em fazer residência em Saúde da Família e da Comunidade. Quero atuar na atenção primária, em postos de saúde de comunidades mais carentes, e trabalhar com atendimento domiciliar a valores totalmente acessíveis, para dar o máximo de acesso a um médico a estas famílias”.

Ela diz que também encontrou forças para seguir em frente com ajuda de amigos. “Foram as minhas 'anjas da guarda' da Aldeia Materna. Elas me presentearam com livros, apostilas, trouxeram almoço nos dias em que eu estava com covid, estudando e meu marido estava internado (dias antes da internação do meu pai), compraram rifa, fizeram vaquinha, se dispuseram a ficar com as crianças. Foi surreal o apoio que eu recebi dessas mulheres e tudo isso me deu força para recomeçar”, finaliza.

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