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Comportamento

Na cidade onde mais se odeia índio, professor insiste nos direitos humanos

Paula Maciulevicius | 03/08/2016 06:25
"Quais são as minhas lutas? Elas são sempre focadas na democracia", responde professor ao redor do guarani, em Dourados. (Foto: Arquivo Pessoal)
"Quais são as minhas lutas? Elas são sempre focadas na democracia", responde professor ao redor do guarani, em Dourados. (Foto: Arquivo Pessoal)

A 233 quilômetros de Campo Grande, a mesma voz que ecoa pelos índios, bate no peito para defender a democracia. Dos mini aos macro-golpes, Tiago Botelho carrega a bandeira de dona Damiana à Dilma Rousseff, aplicando o mesmo pensamento. Aos 33 anos, ele estreia uma série do Lado B que pretende apresentar personagens que representam o que é lutar contra a corrente numa época em que o discurso de ódio é pregado aos quatro cantos.

Nascido em Ivinhema, Tiago voltou para onde estudou, na UFGD, como professor em outubro do ano passado. Em seguida foi apresentado à comunidade "Apyka'i", de guarani-kaiowá, em Dourados, onde desenvolveu uma relação de amizade restrita aos povos de dona Damiana, símbolo da resistência nas terras na BR-463.

Foi a formação familiar que o fez enveredar pelo caminho dos Direitos Humanos e o contato com acadêmicos indígenas na universidade, consolidou. "Sou filho de mãe e pai que sempre lutaram contra as muitas desigualdades. Meu pai é agrônomo e sempre travou uma batalha contra o latifúndio e pela democratização da terra através da reforma agrária. Minha mãe, professora, feminista, sindicalista e de esquerda me ensinou o quanto faz bem amar o ser humano e suas muitas formas de conjugar o verbo viver", conta.

Tiago ao lado de Damiana, cacique que mais lhe ensinou sobre a luta deles. (Foto: Arquivo Pessoal)
Tiago ao lado de Damiana, cacique que mais lhe ensinou sobre a luta deles. (Foto: Arquivo Pessoal)

Hoje, doutorando em Direito Público pela Universidade de Coimbra, mestre em Direito Agroambiental e professor da Faculdade de Direito e Relações Internacionais da UFGD, Tiago prega na prática o que enxerga na teoria. Paralelo ao Direito (UEMS), cursou também História (UFGD), para humanizar e historicizar as questões legais.

"Todos os seres humanos devem ser respeitados e na grande maioria das vezes, é o Estado e sua elite branca, masculina, urbana, cristã e heterossexual quem nega, desrespeita e viola direitos que dão dignidade à vida", afirma. A junção do Direito com a História lhe possibilitou fortalecer e teorizar as lutas pelas questões humanas.

"Quais são as minhas lutas? Elas são sempre focadas na democracia e é uma luta que eu tenho falado que são várias. O micro golpe que constitui o macro", sustenta. O exemplo começa em dona Damiana, guarani de mais de 70 anos despejada da terra que reivindica há décadas para a rodovia. "Damiana, a mulher, o negro. Eles são o micro e viram o macro, que é o que estamos vivendo", compara ao processo de impeachment que corre contra a presidente Dilma Rousseff (PT).

O campo de atuação dele, tanto profissional, como de lutas pessoais, é Dourados. Município que ele define como a "cidade feita para odiar indígenas". "Há uma construção negativa sobre os povos indígenas. Hoje eles perambulam pela cidade, passando fome, indignidade e é uma escolha do Estado. O que eles pedem é o resto da nossa alimentação e os governantes, desde o municipal até o presidente nada fazem".

Dos micro golpes é que surgem os macro, como descreve em livro contra o golpe. (Foto: Arquivo Pessoal)
Dos micro golpes é que surgem os macro, como descreve em livro contra o golpe. (Foto: Arquivo Pessoal)

Ao mesmo tempo em que é luta, também se tornou gratificante o contato. "Eles têm muito a ensinar a nós. Nossa democracia hoje está falida, não se consegue conversar sobre política e cada dia que eu vou na comunidade, aprendo muito com eles sobre as outras formas de se fazer e de se viver, realidades distintas das minhas", explica.

O aprendizado ali é o que tenta passar comunidade afora, de que a sua forma de viver não é única e nem a correta. "Às vezes me dá um pouco de medo. Que as pessoas odeiam indígena? Isso é tão verdade que Dourados não faz nada para mudar, para melhorar. O judiciário despeja na BR e nem se preocupa em como eles vão continuar vivendo".

O professor nada tem de parentesco ou origem indígena. E remar contra a maré, inclusive encabeçando campanhas contra o despejo e depois para a construção de um lar para a cacica Damiana, já foi recebido até com ameaças.

"Mas a luta pela democracia sempre foi uma luta das minorias. Quando os negros lutaram para não serem mais escravos e conquistaram, eles fortaleceram a democracia", exemplifica. O mesmo serve para as mulheres, os índios, os homossexuais, transexuais. "Os direitos são sempre conquistados por um grupo minoritário, por eles terem uma sensibilidade maior da vida e perceberem que a dignidade precisa ser alcançada e alargada", reflete.

Alargar a dignidade é que o resume o papel do professor na cidade e fora dele. Tiago ganhou visibilidade como um dos autores do livro “A Resistência ao Golpe de 2016”, que conta em um conjunto de artigos a visão de que o processo de impeachment votado pela Câmara dos Deputados foi ilegal e sem legitimidade.

"Alargar é a luta para que todos os seres humanos possam viver da maneira como quiserem. Eu acredito que a democracia e ela precisa ainda se fortalecer. Nós estamos vivendo uma na qual as pessoas não aceitam as diferenças, as culturas, religiões e orientações sexuais distintas. Mas nós vamos alcançar isso. O que o Estado nunca deu, nós conquistamos", avalia.

Na cidade, Tiago revela que o assunto quando encabeçado por ele, vira motivo de zombaria. "As pessoas zombam da cara da gente, mas o nosso saber tem feito com que tenhamos guerras, conflitos, degradação. Nossa forma de viver não está condizente.

Enquanto eu tiver força, eu vou lutar e mesmo que, às vezes, seja pesado nadar contra a maré numa cidade que é feita para odiar os povos indígenas, eles são seres humanos brilhantes e que podem nos ensinar".

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