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Comportamento

Revolucionária, Irmã Silvia foi jurada de morte, mas não deixou hospital

Legado da irmã no Hospital São Julião foi contado em documentário exibido nesta segunda-feira

Por Natália Olliver | 18/08/2025 14:43
Revolucionária, Irmã Silvia foi jurada de morte, mas não deixou hospital
Irmã Silvia e atriz Valentina, que deu vida a história da freira no documentário (Foto: Divulgação)

“A maré da vida trouxe este monstro invisível que me persegue noite e dia, reduzindo-me a farrapo humano. Quando quis me afastar, esmagou-me as mãos. Quando quis correr, ceifou minhas pernas. Cercou meu caminho, mas sempre encontrei uma brecha por onde passar com o que me resta.”

RESUMO

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O Hospital São Julião, em Campo Grande, homenageou Irmã Silvia Vacellio, de 93 anos, com um documentário que retrata sua história revolucionária na instituição. A religiosa italiana, que inicialmente sonhava trabalhar na África, encontrou no Brasil sua missão, transformando um antigo leprosário em um centro de reabilitação, mesmo enfrentando ameaças de morte. Durante o evento de estreia do filme, também foi inaugurado o auditório Ney Latorraca, em memória do ator que doou parte de seu patrimônio ao hospital. A obra destaca o papel fundamental da freira na humanização do tratamento dos pacientes com hanseníase, através da arte e do acolhimento, desafiando as convenções da época e sua própria congregação religiosa.

Com esse trecho do poema “Íntegro”, do amigo e escritor Lino Villachá, Irmã Silva, batizada como Silvia Vacellio, de 93 anos, fez a única aparição direta no documentário que homenageia sua própria história e, consequentemente, a do Hospital São Julião. Ali, a religiosa já foi até ameaçada de morte, mas fez do lugar sua verdadeira casa, de onde não arredou o pé.

Reservada, a irmã prefere guardar consigo os dias vividos e os sentimentos acumulados ao longo dos anos. No entanto, amigos e colegas fizeram questão de contar pelo menos um terço do que viram, ouviram dela e sabem da sua vida, assim como do envolvimento da freira na luta pela reintegração das pessoas que viviam com hanseníase.

A estreia e exibição de “Hospital São Julião – A arte de reabilitar vidas” aconteceu nesta segunda-feira (18), no centro de convenções do hospital. Enquanto aguardava a sessão, ao ser questionada pelo Lado B sobre o que achou do resultado, a irmã disse apenas: “Gostei”.

Durante o evento também houve a nomeação do auditório em homenagem ao artista Ney Latorraca, que faleceu em 2024 e doou parte do patrimônio ao hospital. O companheiro dele, Edi Botelho, esteve presente na cerimônia. A irmã também soprou as velinhas de 94 anos adiantado.

Quem fala com proximidade é a roteirista do documentário, Lenilde Ramos, que foi aluna dela no Colégio Nossa Senhora Auxiliadora. Escritora e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, Lenilde explica que o sonho de Silvia era trabalhar em missões na África, mas acabou enviada ao Brasil, mais especificamente a Campo Grande.

Aqui, começou como professora. Anos depois, encontrou no hospital o lugar que buscava para fazer a diferença. Lenilde enxerga Irmã Silvia como uma mulher revolucionária, que não abaixava a cabeça e que levou a arte para dentro do colégio, criando um cineclube dentro do colégio.

“As internas, todo domingo, saíam de duas em duas para passear. Iam até a Rua 14 de Julho e voltavam. Isso era o divertimento dos comerciantes, que sentavam para ver o pessoal do colégio passar. Eu não queria isso e um dia me escondi. Ela me achou e perguntou da minha sanfona. Então começamos a percorrer a periferia da cidade levando a sanfona”.

Para Lenilde, aquilo foi diferente de tudo o que já tinha vivido. Até então, a estudante tocava o instrumento apenas dentro da escola e em festividades. Ela conta que Irmã Silvia fez amizade com outra freira, Maria Pontes, também italiana e que as duas tinham coragem. Elas  se uniram para lutar pelo que acreditavam, fazendo a diferença onde parecia não haver mais esperança.

Revolucionária, Irmã Silvia foi jurada de morte, mas não deixou hospital
Revolucionária, Irmã Silvia foi jurada de morte, mas não deixou hospital
Documentário em homenagem à Irmã Silvia foi exibido nesta segunda (Foto: Natália Olliver)

No colégio, alunos pediam que a irmã levasse cartas aos pais internados no Hospital São Julião. Ela não sabia, até então, que o local era um “leprosário” (como era chamado na época). Diante de tantos pedidos, decidiu descobrir onde estavam os pais das crianças.

“Elas pediam para levar cartas aos pais. A irmã quis saber onde eles estavam e descobriu que estavam doentes”. Após o choque diante de tanta carência reunida em um único espaço, Irmã Silvia começou a arrecadar mantimentos, cobertores e tudo o que pudesse ajudar os enfermos.

“A Irmã passou de 1964 a 1969 levando donativos aos pacientes do São Julião. As freiras faziam campanhas para arrecadar de tudo: itens de higiene e até cigarros, porque os doentes tinham feridas grandes, cheiro forte, e o cigarro ajudava. Inclusive, era motivo de disputa entre as gangues do hospital. Alguns diziam: ‘parece um anjo’. Ela chegou a ser jurada de morte. Um homem entrou a cavalo no hospital para matá-la”.

O documentário resgata essa memória e também destaca artistas e poetas que fizeram parte da história do hospital, como o escritor Lino Villachá e o artista plástico João Zumélio, ambos portadores de hanseníase. Também são lembrados os irmãos sapateiros João e Jorge Damasceno e Bruno Madalena.

Revolucionária, Irmã Silvia foi jurada de morte, mas não deixou hospital
Filme tem 1h de duração e foi filmado em três locais diferentes (Foto: Divulgação)

Na tela, Lenilde acrescenta que seguir fazendo o que a irmã fazia era tarefa difícil já que ela se misturava com os doentes, sem medo de contaminação - que naquele tempo - não sabiam ao certo o que era e como lidar com ela. O hospital é exemplo disso. Ele foi criado como um lugar para deixar os enfermos até a morte. Lá eles viviam entre os seus e esperavam a hora.

“Irmã Silvia conta que um dia foi na casa de um casal no hospital e bebeu café em uma lata de extrato de tomate. Elas eram extraordinárias, revolucionárias e subversivas. Elas não tinham medo”. Anos depois o caso da irmã chegou ao conhecimento da Madre superior que solicitou um encontro com Silvia, em Turim, na Itália. Depois de um tempo o veredito veio. A irmã estava proibida de voltar às ações no Hospital.

 Em cartas encaminhadas à Irmã Maria Pontes, Irmã Silvia conta a novidade e diz que apesar disso o desejo de Deus é maior”. Assim ela voltou ao Hospital.  “A irmã não queria desistir do São Julião e teve que enfrentar os princípios da congregação que é voltada apenas à educação. Fazia 11 anos que ela não tinha voltado para a casa dela. Por alguma razão irmã Silvia não quis ir. As superioras disseram que era caso da superiora geral na Itália, Madre Geral”.

Revolucionária, Irmã Silvia foi jurada de morte, mas não deixou hospital
Revolucionária, Irmã Silvia foi jurada de morte, mas não deixou hospital
Irmã Silvia durante exibição do documentário que dá vida à história dela (Foto: Natália Olliver)

Vida e Ficção

Quem interpreta a religiosa no longa é a psicóloga Valentina de Oliveira Xavier, ex-aluna do Colégio Maria Auxiliadora, onde Irmã Silvia lecionou por anos após deixar a Itália e chegar ao Brasil. Sem nunca ter atuado na área, Valentina conta que a experiência foi emocionante e afirma ter na irmã uma inspiração.

As aparições da jovem são pontuais ao longo do pouco mais de uma hora de filme. Nelas, ela dá voz a pensamentos ficcionais da irmã, criados com base em pesquisas e memórias de outras pessoas.

“Foi uma grande responsabilidade pesquisar sobre a vida dela. Agora eu posso dizer que ela é uma inspiração para a minha vida, quem eu quero ser como ser humano. Na verdade, a primeira reunião que tivemos foi encontrá-la na missa, ela vai à missa todos os dias. Foi o primeiro contato que eu tive com ela. A partir daí, foram as pesquisas que fiz”.

O diretor e jornalista Sérgio Carvalho explica que o hospital participou de um projeto chamado “Operação Mato Grosso”, no qual a Itália enviava voluntários para o Brasil. A irmã Silvia foi responsável por levar o projeto ao Hospital São Julião. Ele adianta ainda que o documentário será exibido na Itália, embora ainda sem data de estreia definida por lá.

“Foram dois meses de gravação em três locais diferentes: o hospital, o colégio e a antiga Estação Ferroviária. A irmã chegou com uma mala cheia de arte. Quando Irmã Silvia chega, ela traz isso na bagagem. Você descobre um universo de possibilidades: a identificação da arte como um instrumento real de cura, um instrumento de reabilitação de vidas. Esse é o grande mote do hospital”.

O presidente do hospital, Carlos Augusto Melke, ressalta que o documentário é um resgate da história “desse pedaço de chão aqui no Estado de Mato Grosso do Sul e coroa uma vida dedicada a fazer o bem às pessoas. Em 50 anos, ela conseguiu transformar um lugar marcado pela dor, pelo sofrimento e pela morte nessa obra belíssima e magnífica que hoje é o hospital”.

Auditório Ney Latorraca

Revolucionária, Irmã Silvia foi jurada de morte, mas não deixou hospital
Revolucionária, Irmã Silvia foi jurada de morte, mas não deixou hospital
Ebi Botelho, viúvo de Ney Latorraca, esteje presente em homenagem para o ator (Fotos: Natália Olliver)

 Ebi botelho, viúvo do ator Ney Latorraca esteve na cerimônia que deu o nome do artista ao auditório do Hospital São Julião. Ao Lado B, ele contou que o luto tem sido difícil e que  apesar dos 8 meses, a partida de Ney é recente para ele.

"A gente se conheceu mais maduro, foram 30 anos. A gente era de um amor muito grande. Mesmo se passar muito tempo vai ser assim. É um outro tipo de sentimento que vai ficar para sempre".

Durante a fala sobre o companheiro, se emocionou ao dizer o quanto Ney amava a instituição e sempre contava sobre o lugar para ele. Ele conta que vir para Campo Grande era quase como uma libertação.

"A cidade era praticamente ruas de terra vermelha., como ele dizia. Isso há anos. Onde o ney estiver tenho certeza que ele está muito feliz com essa homenagem. Ele sempre falou da importância desse lugar".

O momento também contou com a presença da primeira dama, Mônica Riedel, também madrinha do documentário. "Eu faço parte do conselho do Hospital e uma das coisas que eu sempre falei foi da história da Irmã Silva, que é comovente, de uma pessoa que encarou uma dificuldade, um problema de forma efetiva e transformadora. Então eu tenho realmente um carinho muito grande pela São Julião e, claro, pela Irmã Silva", comentou.

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