Revolucionária, Irmã Silvia foi jurada de morte, mas não deixou hospital
Legado da irmã no Hospital São Julião foi contado em documentário exibido nesta segunda-feira
“A maré da vida trouxe este monstro invisível que me persegue noite e dia, reduzindo-me a farrapo humano. Quando quis me afastar, esmagou-me as mãos. Quando quis correr, ceifou minhas pernas. Cercou meu caminho, mas sempre encontrei uma brecha por onde passar com o que me resta.”
RESUMO
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O Hospital São Julião, em Campo Grande, homenageou Irmã Silvia Vacellio, de 93 anos, com um documentário que retrata sua história revolucionária na instituição. A religiosa italiana, que inicialmente sonhava trabalhar na África, encontrou no Brasil sua missão, transformando um antigo leprosário em um centro de reabilitação, mesmo enfrentando ameaças de morte. Durante o evento de estreia do filme, também foi inaugurado o auditório Ney Latorraca, em memória do ator que doou parte de seu patrimônio ao hospital. A obra destaca o papel fundamental da freira na humanização do tratamento dos pacientes com hanseníase, através da arte e do acolhimento, desafiando as convenções da época e sua própria congregação religiosa.
Com esse trecho do poema “Íntegro”, do amigo e escritor Lino Villachá, Irmã Silva, batizada como Silvia Vacellio, de 93 anos, fez a única aparição direta no documentário que homenageia sua própria história e, consequentemente, a do Hospital São Julião. Ali, a religiosa já foi até ameaçada de morte, mas fez do lugar sua verdadeira casa, de onde não arredou o pé.
Reservada, a irmã prefere guardar consigo os dias vividos e os sentimentos acumulados ao longo dos anos. No entanto, amigos e colegas fizeram questão de contar pelo menos um terço do que viram, ouviram dela e sabem da sua vida, assim como do envolvimento da freira na luta pela reintegração das pessoas que viviam com hanseníase.
A estreia e exibição de “Hospital São Julião – A arte de reabilitar vidas” aconteceu nesta segunda-feira (18), no centro de convenções do hospital. Enquanto aguardava a sessão, ao ser questionada pelo Lado B sobre o que achou do resultado, a irmã disse apenas: “Gostei”.
Durante o evento também houve a nomeação do auditório em homenagem ao artista Ney Latorraca, que faleceu em 2024 e doou parte do patrimônio ao hospital. O companheiro dele, Edi Botelho, esteve presente na cerimônia. A irmã também soprou as velinhas de 94 anos adiantado.
Quem fala com proximidade é a roteirista do documentário, Lenilde Ramos, que foi aluna dela no Colégio Nossa Senhora Auxiliadora. Escritora e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, Lenilde explica que o sonho de Silvia era trabalhar em missões na África, mas acabou enviada ao Brasil, mais especificamente a Campo Grande.
Aqui, começou como professora. Anos depois, encontrou no hospital o lugar que buscava para fazer a diferença. Lenilde enxerga Irmã Silvia como uma mulher revolucionária, que não abaixava a cabeça e que levou a arte para dentro do colégio, criando um cineclube dentro do colégio.
“As internas, todo domingo, saíam de duas em duas para passear. Iam até a Rua 14 de Julho e voltavam. Isso era o divertimento dos comerciantes, que sentavam para ver o pessoal do colégio passar. Eu não queria isso e um dia me escondi. Ela me achou e perguntou da minha sanfona. Então começamos a percorrer a periferia da cidade levando a sanfona”.
Para Lenilde, aquilo foi diferente de tudo o que já tinha vivido. Até então, a estudante tocava o instrumento apenas dentro da escola e em festividades. Ela conta que Irmã Silvia fez amizade com outra freira, Maria Pontes, também italiana e que as duas tinham coragem. Elas se uniram para lutar pelo que acreditavam, fazendo a diferença onde parecia não haver mais esperança.
No colégio, alunos pediam que a irmã levasse cartas aos pais internados no Hospital São Julião. Ela não sabia, até então, que o local era um “leprosário” (como era chamado na época). Diante de tantos pedidos, decidiu descobrir onde estavam os pais das crianças.
“Elas pediam para levar cartas aos pais. A irmã quis saber onde eles estavam e descobriu que estavam doentes”. Após o choque diante de tanta carência reunida em um único espaço, Irmã Silvia começou a arrecadar mantimentos, cobertores e tudo o que pudesse ajudar os enfermos.
“A Irmã passou de 1964 a 1969 levando donativos aos pacientes do São Julião. As freiras faziam campanhas para arrecadar de tudo: itens de higiene e até cigarros, porque os doentes tinham feridas grandes, cheiro forte, e o cigarro ajudava. Inclusive, era motivo de disputa entre as gangues do hospital. Alguns diziam: ‘parece um anjo’. Ela chegou a ser jurada de morte. Um homem entrou a cavalo no hospital para matá-la”.
O documentário resgata essa memória e também destaca artistas e poetas que fizeram parte da história do hospital, como o escritor Lino Villachá e o artista plástico João Zumélio, ambos portadores de hanseníase. Também são lembrados os irmãos sapateiros João e Jorge Damasceno e Bruno Madalena.
Na tela, Lenilde acrescenta que seguir fazendo o que a irmã fazia era tarefa difícil já que ela se misturava com os doentes, sem medo de contaminação - que naquele tempo - não sabiam ao certo o que era e como lidar com ela. O hospital é exemplo disso. Ele foi criado como um lugar para deixar os enfermos até a morte. Lá eles viviam entre os seus e esperavam a hora.
“Irmã Silvia conta que um dia foi na casa de um casal no hospital e bebeu café em uma lata de extrato de tomate. Elas eram extraordinárias, revolucionárias e subversivas. Elas não tinham medo”. Anos depois o caso da irmã chegou ao conhecimento da Madre superior que solicitou um encontro com Silvia, em Turim, na Itália. Depois de um tempo o veredito veio. A irmã estava proibida de voltar às ações no Hospital.
Em cartas encaminhadas à Irmã Maria Pontes, Irmã Silvia conta a novidade e diz que apesar disso o desejo de Deus é maior”. Assim ela voltou ao Hospital. “A irmã não queria desistir do São Julião e teve que enfrentar os princípios da congregação que é voltada apenas à educação. Fazia 11 anos que ela não tinha voltado para a casa dela. Por alguma razão irmã Silvia não quis ir. As superioras disseram que era caso da superiora geral na Itália, Madre Geral”.
Vida e Ficção
Quem interpreta a religiosa no longa é a psicóloga Valentina de Oliveira Xavier, ex-aluna do Colégio Maria Auxiliadora, onde Irmã Silvia lecionou por anos após deixar a Itália e chegar ao Brasil. Sem nunca ter atuado na área, Valentina conta que a experiência foi emocionante e afirma ter na irmã uma inspiração.
As aparições da jovem são pontuais ao longo do pouco mais de uma hora de filme. Nelas, ela dá voz a pensamentos ficcionais da irmã, criados com base em pesquisas e memórias de outras pessoas.
“Foi uma grande responsabilidade pesquisar sobre a vida dela. Agora eu posso dizer que ela é uma inspiração para a minha vida, quem eu quero ser como ser humano. Na verdade, a primeira reunião que tivemos foi encontrá-la na missa, ela vai à missa todos os dias. Foi o primeiro contato que eu tive com ela. A partir daí, foram as pesquisas que fiz”.
O diretor e jornalista Sérgio Carvalho explica que o hospital participou de um projeto chamado “Operação Mato Grosso”, no qual a Itália enviava voluntários para o Brasil. A irmã Silvia foi responsável por levar o projeto ao Hospital São Julião. Ele adianta ainda que o documentário será exibido na Itália, embora ainda sem data de estreia definida por lá.
“Foram dois meses de gravação em três locais diferentes: o hospital, o colégio e a antiga Estação Ferroviária. A irmã chegou com uma mala cheia de arte. Quando Irmã Silvia chega, ela traz isso na bagagem. Você descobre um universo de possibilidades: a identificação da arte como um instrumento real de cura, um instrumento de reabilitação de vidas. Esse é o grande mote do hospital”.
O presidente do hospital, Carlos Augusto Melke, ressalta que o documentário é um resgate da história “desse pedaço de chão aqui no Estado de Mato Grosso do Sul e coroa uma vida dedicada a fazer o bem às pessoas. Em 50 anos, ela conseguiu transformar um lugar marcado pela dor, pelo sofrimento e pela morte nessa obra belíssima e magnífica que hoje é o hospital”.
Auditório Ney Latorraca

Ebi botelho, viúvo do ator Ney Latorraca esteve na cerimônia que deu o nome do artista ao auditório do Hospital São Julião. Ao Lado B, ele contou que o luto tem sido difícil e que apesar dos 8 meses, a partida de Ney é recente para ele.
"A gente se conheceu mais maduro, foram 30 anos. A gente era de um amor muito grande. Mesmo se passar muito tempo vai ser assim. É um outro tipo de sentimento que vai ficar para sempre".
Durante a fala sobre o companheiro, se emocionou ao dizer o quanto Ney amava a instituição e sempre contava sobre o lugar para ele. Ele conta que vir para Campo Grande era quase como uma libertação.
"A cidade era praticamente ruas de terra vermelha., como ele dizia. Isso há anos. Onde o ney estiver tenho certeza que ele está muito feliz com essa homenagem. Ele sempre falou da importância desse lugar".
O momento também contou com a presença da primeira dama, Mônica Riedel, também madrinha do documentário. "Eu faço parte do conselho do Hospital e uma das coisas que eu sempre falei foi da história da Irmã Silva, que é comovente, de uma pessoa que encarou uma dificuldade, um problema de forma efetiva e transformadora. Então eu tenho realmente um carinho muito grande pela São Julião e, claro, pela Irmã Silva", comentou.
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