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Comportamento

Sim, vai ter mulher trans no serviço de limpeza de Campo Grande, avisa Loren

Paula Maciulevicius | 25/02/2016 06:23
Por trás dos óculos de Loren, estão grandes olhos negros que enxergam no ofício uma grande oportunidade. (Foto: Alan Nantes)
Por trás dos óculos de Loren, estão grandes olhos negros que enxergam no ofício uma grande oportunidade. (Foto: Alan Nantes)

Depois de 15 anos trabalhando no mercado informal, Loren Berlim é enfática ao dizer que vai ter, sim, mulher trans e travesti no serviço de limpeza pública da cidade. Ela acredita não ser a primeira, mas não deixa dúvidas de que é a mais radiante com o emprego.

Tem uma semana que Loren sai da casa onde mora com os pais, no bairro Otávio Pécora, em Campo Grande e chega às 6h30 da manhã na Seinthra (Secretaria Municipal de Infraestrutura, Transporte e Habitação). De lá, segue o cronograma de limpeza que nos primeiros dias foram as ruas do Indubrasil e agora já são os canteiros das avenidas do bairro Santo Amaro.

Loren tem 37 anos, um corpo esbelto. Usa tênis por conta do ofício, calça justa e blusa de alcinha. Por trás dos óculos, estão grandes olhos negros que enxergam no ofício uma grande oportunidade. Nas redes sociais e entre amigos, ela é Loren Artesã.

Loren no início do trabalho, na limpeza da escola.
Loren no início do trabalho, na limpeza da escola.
Loren na região do Indubrasil. (Fotos: Arquivo Pessoal)
Loren na região do Indubrasil. (Fotos: Arquivo Pessoal)

O ingresso dela na função aconteceu por intermédio do Proinc (Programa de Inclusão Profissional) da Funsat (Fundação Social do Trabalho de Campo Grande), que, a pedido da coordenadora de Políticas Públicas LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros), Cris Stefany, incluiu LGBT's.

"Comecei trabalhando numa escola municipal enquanto os funcionários estavam de férias, depois que eles voltaram, a Funsat me mandou para cá. Eu nunca tinha ouvido falar da Seinthra", conta Loren. É no pátio da Secretaria, depois do expediente, que ela conta um pouquinho dela mesma, embaixo de árvores, sentada num banco que parece de praça.

Ao saber das vagas destinadas às travestis e transexuais, Loren que trabalhava até então como catadora de latinhas e artesã, resolveu ir atrás. "Quando eu coloquei os pés aqui fiquei empolgada. Limpeza pública é a minha área, sou catadora, já fui faxineira também e depois de 15 anos trabalhando de catadora de latinha, depois desse trabalho, eu não volto mais para as ruas". O voltar para as ruas, ela deixa claro que é quanto à catar recicláveis. Loren afirma que não chegou a se prostituir.

Apesar de ter Ensino Médio completo, uma desenvoltura ao falar e um português dentro de todas as normas, desistiu de cursar universidade. "Eu já não tinha certeza de que ia colocar os pés na universidade. Por que? São poucas vagas. Resolvi trancar essa ideia, mais uma vez", conta.

Sobre o trabalho, ela diz estar gostando e que os dias lhe trouxeram o impacto da jornada puxada. Mas não tem enxada que a faça reclamar. "É sim, meu primeiro trabalho formalizado da história, apesar de não ser concursado", ressalta.

"Eu não sou a primeira mulher trans, mas eu gostei, eu vim atrás". Loren assumiu o nome em 2007, dois anos depois de começarem as mudanças externas. Apesar de referir a si mesma como mulher trans em alguns momentos, ela prefere se declarar travesti.

Se despedindo do expediente que começa 6h30 da manhã na Seinthra. (Foto: Alan Nantes)
Se despedindo do expediente que começa 6h30 da manhã na Seinthra. (Foto: Alan Nantes)

Dentro da sopa de letrinhas das iniciais, na avaliação de Loren, o trabalho que para alguns pode ser "pouco", para ela, vale e muito. "Para travestis, infelizmente é mais difícil emprego por causa da nossa aparência. As pessoas acham que nos fantasiamos, tem essa confusão ideológica acerca da questão de gênero. É falta de conhecimento e infelizmente, vivemos numa sociedade machista e transfóbica", sustenta. 

A única reivindicação e exigência dela quanto ao serviço, feita por escrito à Funsat, foi a de não querer usar uniformes masculinos, que foi prontamente atendida e ela se veste como tem vontade.

Para explicar o hoje, Loren vai ao passado. Nas escolas, o ensino se baseia, segundo ela, dentro de uma ideologia heteronormativa, onde crianças aprendem a reconhecer como existente apenas homem e mulher cisgêneros. "E temos negada a nossa existência. As pessoas acham que colocamos trajes feminilizados por curiosidade, para encher a cara ou cheirar cocaína. No meu ponto de vista é orientação sexual", explica.

E essa educação de lá de trás e pregada até hoje nas escolas é que fez Loren se esconder por trás da informalidade. "A vida toda me desinteressei e preferi viver no emprego formal para me preservar como mulher trans. A maioria vive nas ruas, algumas na prostituição, outras ocupando os piores postos de trabalho para preservar sua identidade de gênero", justifica.

Contratar travesti ou transexual era, para ela, sinônimo de sofrimento dos desvios ideológicos, de não ser reconhecida como mulher.

"Se hoje eu sou reconhecida como mulher? Não definitivamente. As pessoas ainda acham que é doença, desvio de comportamento. Temos dificuldade socialização, de não conseguirmos fazer amigos. A mulher trans, a travesti, ela é desprezada. Eu facilmente me isolo, mas hoje eu consegui fazer alguns amigos, mas carrego essa fragilidade ainda". 

O sonho da mulher trans no serviço de limpeza pública é o de se formar em História, por adorar palestrar e ter no currículo a militância em partidos de esquerda. "Vai ter mulher trans no serviço público sim, até perguntei se já tem como renovar o meu contrato, porque eu não volto mais para as ruas". 

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