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Comportamento

Sobre dependência química: "Meu nome é Richard e eu sou o Homem de Ferro"

Richie Beauvais | 04/01/2017 06:25

O Lado B começa a publicar hoje uma série de artigos escritos por um homem que luta contra a dependência química. Richie Beauvais - ou “Ritch Bové” como costuma ser chamado após tentar corrigir a pronúncia do seu sobrenome – é um pseudônimo ou um alter ego (!). Tem 30 anos, é jornalista, pai, que após “um período sabático de autoconhecimento” em uma Comunidade Terapêutica para tratamento decidiu escrever sobre o assunto. É “viciado” em música, revistas em quadrinhos, séries, filmes e Carnaval. Por aqui, ele vai falar semanalmente na coluna “Fim de Carreira” sobre uma doença séria, pouco combatida na rede pública de saúde, apesar dos efeitos dramáticos. 

Para começar a conversa, ele justifica o anonimato.

Cena do filme Homem de Ferro.
Cena do filme Homem de Ferro.

Quando Tony Stark (Iron Man/2008), decidiu ignorar o script de sua Assessoria e proclamar em coletiva que ele próprio era o Homem de Ferro, ele o fez de maneira impulsiva, auto-suficiente e buscando aceitação. Ele fez algo reprovável para a maioria dos super-heróis: quebrou seu anonimato, revelou-se como alter ego do herói (ou seria o Homem de Ferro o alter ego de Tony?).

O anonimato ajuda o indivíduo a ter uma “vida normal”(ao menos quando não está vestindo um uniforme com a cueca por cima da calça e uma capa), como também protege a vida de seus entes queridos. É sempre um momento temido, mas também aguardado, pelos fãs dos mascarados quando um vilão consegue finalmente descobrir sua identidade secreta e com isso atingi-lo em seu ponto mais fraco: as pessoas que ama. Grande parte dos enredos das Histórias em Quadrinhos tem seu ápice, seu clímax, sua virada dramática, quando algum destes super-heróis resolve quebrar o anonimato, ou tem seu anonimato quebrado por um super inimigo ou mesmo um meio de comunicação (Peter Parker, o Homem-Aranha, quem o diga!).

Falando em Spider-Man, seu falecido Tio Ben deixou ao garoto Parker, mas também a todos nós fãs do herói aracnídeo, uma das frases mais célebres das HQs e um dos maiores ensinamentos que se pode acatar: “Grandes poderes exigem grandes responsabilidades”.

O anonimato é algo sério para os super-heróis, mas não só para estes. O anonimato não é importante só no universo das Grafic Novels, Comics, ou Histórias em Quadrinhos (H.Q.s para os íntimos). Há no “mundo real” aqueles que optam por manter inominados determinados assuntos de seus passados, principalmente após uma mudança radical em seu estilo de vida. Este é o caso dos dependentes químicos.

Ao contrário do personagem Tony Stark, o ator Robert Downey Jr., que dá vida ao herói multibilionário nos cinemas, não teve a chance de preservar seu anonimato em relação à dependência química. Downey iniciou sua carreira nos anos oitenta e teve destaque ironicamente no filme “Abaixo de Zero” (Less Than Zero) onde interpreta um jovem viciado. Tem em seu currículo um gráfico de ascensões astronômicas e quedas meteóricas, quase na mesma proporção. Em 1992 interpretou Chaplin no filme homônimo, o que lhe rendeu uma indicação ao Oscar.

Dado seu brilhantismo enquanto ator, suas prisões por porte e abuso de drogas, violência, internações judiciais para tratamento da dependência e mesmo internações voluntárias em clínicas de reabilitação, fizeram dele um renegado em Hollywood, mas por tempo o suficiente para ele recuperar. Ele está “limpo” há, pelo menos, 13 anos.

O interessante de analisar Robert para falar de Tony é que o “super-herói” tem características gritantes de um dependente químico: defeitos de caráter tão aflorados quanto grandes qualidades. Todos os seres humanos têm defeitos de caráter em menor ou maior quantidade, mas a maioria das pessoas utiliza estes “artifícios”que utilizamos para açõesque não condizem com um caráter saudável. Não como aquela “mentirinha” de que “já estou quase chegando” tão usada.

Veja o exemplo de Stark: Durante toda a infância, o jovem Tony Stark teve o carinho paterno substituído por cobranças de postura “à altura” de sua condição financeira e inteligência, além de oferta de coisas materiais no lugar de presença e atenção. Da relação distante com o pai até morte “acidental” e pré-matura dos genitores, restou ao pequeno gênio bilionário um ego fragilizado e inseguro, e por isso egocêntrico, irônico, arrogante, inconsequente, impulsivo, autossuficiente em alguns aspectos e autodestrutivo na maioria deles, manipulador e vingativo, mas também muitíssimo inteligente e perspicaz, com um senso de justiça “pra lá de peculiar”.

Não bastasse esta lista de defeitos/características para proteger seu ego infantilizado, Stark se reveste de uma armadura high-tech com arsenal capaz de provocar hecatombes e de uma máscara de ouro, sempre impassível, que não permite ao outro saber seus sentimentos através de suas expressões. Para algumas correntes da Psicologia, todos nós usamos máscaras. Seria impossível encarar o outro e o mundo mostrando-se exatamente como se é. Mas ele o faz literalmente.

Tony vai além: voa pelos céus como Peter Pan e os Garotos Perdidos da Terra do Nunca, o que denota ter a chamada “Síndrome de Peter Pan”, que acomete pessoas que se recusam a amadurecer e apegam-se a seus brinquedos (seja uma armadura dourada e bordô, seja “cortando giro” em uma moto esportiva, ou um automóvel estilo“pancadão”).

Apesar de ser insuportavelmente arrogante, Tony também pode ser carismático e sedutor, exatamente como Don Juan De Marco, personagem do escritor inglês e bon-vivant, Lord Byron.Características estas que denotam uma tendência para o chamado “Juanismo”, ou “Síndrome de Don Juan”. Em outras palavras, um desvio comportamental no qual o indivíduo exerce a “arte da conquista” apenas pelo prazer de obter a afeição da pessoa desejada, perdendo o interesse pela mesma logo após atingir seu objetivo.

São tantas as similaridades de Stark com as características – defeitos de caráter – encontradas na maioria dos dependentes químicos que, ainda que não fosse o propósito de Stan Lee, o gênio das H.Q.s que criou o personagem, foi tentador traçar estes paralelos.

É quase palpável a possível pretensão de Lee, como é clara a pretensão deste que vos escreve. Tenha certeza de que, apesar de se tratar de um recurso textual, o título não é só uma figura de linguagem, como seria mais adequado dizer que “meu nome é Richard e eu sou como Downey Jr.”, ou ainda “eu sou como Tony Stark”. Ambas as comparações servem para saldar uma dívida com o título. Meu nome não é Richard.

Para a finalidade do texto é adequado dizer que sou um dependente químico e que a quebra do meu anonimato em relação a isto não se dará por impulsividade, auto-suficiência ou busca por aceitação a exemplo de Stark. Por ora me chamem de Richie Beauvais e saibam que escrevo por sentir a necessidade de ver o tema “dependência química” ser tratado não mais como assunto das páginas policiais, mas sim na editoria de comportamento. Convido vocês para um ambiente de debate saudável deste assunto tabu. Aguardo contribuições e espero vocês no próximo artigo!

 

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