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Comportamento

Um dia expulso de casa, grupo compartilha histórias de quem nunca recebe visitas

Paula Maciulevicius | 15/06/2015 06:12
Atividade que a Rede Apolo levou a eles, junto com doações na semana que passou. (Foto: Fernando Antunes)
Atividade que a Rede Apolo levou a eles, junto com doações na semana que passou. (Foto: Fernando Antunes)

De 27, apenas 5 recebem visitas. A ala das travestis e gays do Instituto Penal de Campo Grande é a que menos espera pelo final de semana. Porque sabem que do portão para dentro ninguém chega com um sorriso. Se lá fora eles e elas estão por si só, quem dirá lá dentro, onde para um portão se abrir, outro tem que se fechar.

O barulho de um presídio é sufocante. A grade pesada de ferro bate forte na alma, mesmo quando o agente abre com delicadeza. São cadeados, chaves, grades, portas e portões que simbolizam no dia a dia deles o que é não ser livre. Na semana que passou, o Lado B foi ao Instituto Penal participar de uma entrega de roupas e cobertores, promovida pela Rede Apolo. Além da doação de materiais, a rede doou os ouvidos para escutá-los.

Eles recebem a gente com um sorriso. Coisa que eu nem imaginava que fosse acontecer. Alguns vestem a camiseta de internos, na cor laranja, do próprio presídio. Outros o uniforme da Rede Apolo, doados na última visita, depois de eles pedirem muito, justamente por não ter o que vestir.

Sentados em círculos eles relatam a falta de roupas, de materiais de higiene, cremes, secador de cabelos, xampú, coisa que pra gente aqui de fora é essencial sim. Boa parte disso entra no presídio através dos familiares. Como eles pouco, para não dizer quase zero, têm visitas, quem ganha divide. Solidariedade que funciona bem entre grades.

"Minha mãe não aceita o fato de eu estar travestida. Então o que eu pedir disso, ela não vai trazer", ouço a travesti Mel, de 42 anos, dizer. "São 20h recolhidos, 4h de sol", diz o marido dela. 

Rayssa, forasteira, travesti de Manaus calcula metade da vida sem uma visita. (Foto: Fernando Antunes)
Rayssa, forasteira, travesti de Manaus calcula metade da vida sem uma visita. (Foto: Fernando Antunes)

O grupo têm de 18 até 52 anos. A maioria está de blush, batom e rímel. Itens que lá dentro valem ouro, de tão difícil que é conseguir. Uma das mais tagarelas, é Rayssa, de 29 anos. Com um sotaque que faz a gente viajar daqui para o Norte do País, ela começa a contar sua história.

De início eu penso que por ser de Manaus é pela distância que a família não a vem visitar. Mas depois de conversar com outros internos, percebo que não é a geografia que dificulta. Familiares levantam barreiras mesmo quando elas não existem.

"Eu nunca tive visita nenhuma", me conta Rayssa. Já foram quatro anos de pena e outros três que serão cumpridos por tráfico de drogas. "Fui mula de tráfico e rodei. Vim incentivada pelo valor", me resume.

A mãe trabalha como cozinheira, segundo ela, de segunda a segunda. As férias que teve, aproveitou para viajar até a casa da avó de Rayssa, depois de oito anos sem aparecer por lá.

"Somos forasteiros. É como a gente se chama aqui. Eu não tenho ninguém. Quem é da cidade já não tem visita, imagina quem não é. Aqui muda muita coisa..." Queria ter tido um tempo maior para interpretar as palavras de Rayssa.

"Sou cozinheiro, sou cabeleireiro..." - tenho de interromper. Diante de mim está uma travesti, mas que passa o tempo todo referindo a si mesma com terminações masculinas. "É costume de família. A minha mãe nunca vai aceitar. Ela fala meu filho, por isso que eu falo tudo assim", explica.

Dos 27 internos, entre gays e travestis, só 5 têm quem os veja, de fora, aos finais de semana. (Foto: Fernando Antunes)
Dos 27 internos, entre gays e travestis, só 5 têm quem os veja, de fora, aos finais de semana. (Foto: Fernando Antunes)

Nos primeiros meses de prisão, Rayssa conta ter tido a ajuda financeira da dona da droga, o que a possibilitava ter coisas que hoje lhe faltam. "Ela mandava, mas depois disse que tinha acabado a obrigação".

Volto a pergunta de como é ser forasteiro. Palavreado que pelo que entendi, eles se intitulam lá dentro. "É chato, é horrível. Vai chegar final de semana, você vai ter vontade de comer alguma coisa e não vai ter ninguém pra te trazer".

Num sorrisão, Rayssa me conta o que tanto desejaria comer. "Hoje, se eu fosse pedir pra minha mãe, seria caldeirada de peixe e pirão de açaí. Você já comeu? É uma delícia, é lá de Manaus", descreve.

A comunicação com a família é restrita às cartas. Pela letra da mãe, ela repete o que parece ouvir da voz dela. "Minha mãe fala que foi uma metade da minha vida aqui. Eu cheguei com 24 anos, vou sair com 32... O que eu me lembro por último de ter visto? Os prédios, as ruas. Antes do presídio eu lembro de um reflexo, que parecia a minha cidade".

Jeniffer tem 28 anos. Pele negra, cabelo aparadinho e a blusa laranja, do próprio instituto. Como a reunião com a Rede Apolo já havia acabado, ela corria segurando panelas e copos para deixar tudo certinho no salão onde conversávamos. Um sorriso branco e brilhante me respondeu que a família é dali mesmo. Dos três anos já cumpridos de pena por tráfico, não veio ninguém lhe visitar. Serão mais dois anos pela frente. "É que eles não tem tempo", justifica. Talvez seja a desculpa que ela dê a si mesma a cada final de semana que chega no calendário, mas que ninguém aparece.

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