ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no Twitter Campo Grande News no Instagram
ABRIL, TERÇA  23    CAMPO GRANDE 21º

Comportamento

Usei droga desde os 11, cumpri pena 4 vezes e voltei para ajudar meu bairro

Thailla Torres | 15/07/2016 06:25
Eneir não tem vergonha de falar sobre as marcas que o tráfico (Foto: Fernando Antunes)
Eneir não tem vergonha de falar sobre as marcas que o tráfico (Foto: Fernando Antunes)

Dos 51 anos de vida, 28 deles Eneir Silva esteve envolvida com a criminalidade. Depois de 7 passagens por tráfico de drogas, 4 prisões e a distância da família, ela se viu pronta para mudar de rumo.

Após cumprir pena e sair em 2008, Eneir deu de cara com o preconceito. Mas resistiu na mesma comunidade onde cresceu como traficante, hoje, dedicada ao trabalho social. A transformação que garante ter sofrido ela relata aqui no Voz da Experiência.

Hoje o sorriso de Eneir existe por ter a oportunidade de ajudar. (Foto: Juliano Almeida)
Hoje o sorriso de Eneir existe por ter a oportunidade de ajudar. (Foto: Juliano Almeida)

Aos 11 anos, estava na escola e foi ali que conheci as drogas. Comecei usando maconha junto com amigos e foi aí que comecei a repetir de ano. Com 15 anos eu já me recordo que estava envolvida com a criminalidade, usando droga diariamente, roubando, assaltando e me envolvendo com o tráfico de drogas.

Envolvida no crime, as pessoas ao meu redor sabiam que eu não tinha medo. E por isso comecei a assaltar com um grupo de pessoas que tinham vindo para Campo Grande cometer crimes e tinham o objetivo de buscar drogas no Paraguai.

Foi tanta coisa, que é até difícil lembrar do dia exato quando fui presa pela primeira vez. Mas lembro que eu estava em uma casa no Bairro Santo Antônio, embalando drogas para mandar a São Paulo. Quando, de repente, a polícia entrou onde eu estava e fui presa com 18 quilos de maconha.

Fiquei quatro anos presa e quando fui solta sai cheia de vontade de fazer o que eu queria. Ainda não tinha aprendido com os meus erros, continuei usando drogas e voltei para o crime como quem nunca tivesse ficado cadeia.

Foram 7 passagens pela polícia, mas somente 4 delas eu cheguei a ficar no presídio. A última prisão, e a mais dolorosa em minha vida, foi em 2004. Fui presa por tráfico em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. Lá cumpri pena durante 4 anos e foi uma das minhas piores prisões, quase morri e vi pessoas morrerem na minha frente.

Dentro da cadeia existem facções, ou você faz parte ou você fica na pedra. Que é quando você fica de fora de tudo, mas também sobre consequências por conta disso. Eu não tinha ninguém por mim, não recebia visitas e era como se eu não existisse mais. Fiquei só e aquilo me angustiava, mas eu acreditava em poucas coisas. Não via na minha frente que alguém pudesse olhar por mim naquele momento.

Dentro da prisão, tive apenas uma pessoa em que me aproximei, ela me defendia e ficava ao meu lado, até o dia que ela foi assassinada também e aquilo me deixou ainda mais revoltada. Um dia num momento de visita, uma pastora passou pela galeria onde eu ficava e naquela hora eu estava apanhando das outras presas por estar escondendo a maconha que a gente usava lá dentro.

Ela me olhou e me convidou para ir ao culto que seria realizado lá dentro e dizendo que Deus iria me ouvir, que eu não seria julgada. Eu não acreditei e ainda por cima desafiei, querendo saber se esse tal de Deus teria realmente alguma coisa para falar pra mim. Tanto, que ao chegar na sala, eu fiquei próximo da porta, imaginando que eu não iria gostar e se estivesse na porta seria mais fácil escapar dali.

Ao lado de uma iniciativa voluntária, Eneir abriu a casa para ajudar a comunidade. (Foto: Juliano Almeida)
Ao lado de uma iniciativa voluntária, Eneir abriu a casa para ajudar a comunidade. (Foto: Juliano Almeida)

Não sei ao certo o que aconteceu comigo naquele dia. Se foram as palavras, o momento, a solidão ou se foi um milagre. Eu só me lembro que eu chorei, chorei muito naquele culto quando comecei a ver tudo que estava acontecendo comigo e a onde eu tinha chegado. De joelhos, eu olhava pra cima, não enxergava o céu e só via as grades. Vi que nada do que eu tinha feito valeu a pena, lembrei das pessoas na mesma situação que eu e que já haviam morrido ali dentro. 

Quando eu sai da sala, eu chorei de desespero e fiquei pensando se tinha acontecido comigo. Acreditei que eu havia passado uma lavagem cerebral ou estava tendo uma alucinação. Daquele dia em diante, eu prometi para mim que não usaria mais drogas e passei a repensar minha vida.

Mas não foi fácil, eu tive uma vida muito difícil e me lembrava com frequências das coisas que tinha feito. Mas decidi seguir adiante ao lado da fé, acredito que foi ela que me salvou naquele momento. 

Depois de um ano sem drogas e participando da igreja, eu fui solta. Voltei para Campo Grande perto da minha família e para casa na Vila Aimore, que eu havia construído com o dinheiro do tráfico, antes de ser presa. Voltei para a minha comunidade, em busca de refazer a minha vida, mas foi aí que eu vi que não seria fácil.

As pessoas sentem medo e ficam ariscas com a gente. Não te dão oportunidade, trabalho e dificilmente você é aceita no mercado. Mas eu resolvi encarar o desafio e voltar para a sala de aula. Entrei na faculdade e estou no primeiro semestre de Serviço Social. E posso afirmar que depois da fé eu me descobri outra pessoa. 

Assim que eu sai da cadeia, eu me desesperei quando comecei a olhar para traz e ver a vida dos meus sobrinhos. Senti medo de que eles passassem pela mesma situação que eu. Por isso, resolvi abrir a minha casa para atender a minha comunidade e principalmente tirar as crianças da rua.

A minha residência virou a Casa Azul, um espaço para que seja realizado trabalhos voluntários que levem dignidade as pessoas. 

Pode não parecer muito, mas foi a maneira que eu encontrei de ajudar as crianças na construção de um sonho. Não tenho vergonha de contar a minha história e é como um aprendizado, uma forma de querer ser melhor e sair de um caminho que eu sei que me levaria à morte. 

Hoje trabalho como diarista, faço bicos lavando carro, manutenção de portas e carpindo quintal, além de participar de projetos sociais que chegam até a Casa Azul.

Hoje posso dizer que tenho serenidade e paz, apesar das dificuldades, quando vejo o brilho nos olhos das crianças em cada projeto, é estimulador. É a porta de um sonho para eles encontrarem um mundo melhor lá fora. 

Curta o Lado B no Facebook.

Nos siga no Google Notícias