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Meio Ambiente

Cadastro fundiário expõe como o Pantanal mudou de dono e de uso do solo

Levantamento de 2025 revela concentração extrema de terras e avanço do agro corporativo no bioma

Por Vasconcelo Quadros, de Brasília | 31/12/2025 08:00
Cadastro fundiário expõe como o Pantanal mudou de dono e de uso do solo
Comitiva toca o gado em região seca do Pantanal (Foto: Jairton Bezerra)

Durante mais de um século, o Pantanal foi moldado por um sistema produtivo ajustado ao ritmo das águas. As grandes fazendas pantaneiras tradicionais, ainda que extensas, organizavam a pecuária extensiva de acordo com o pulso anual das cheias e vazantes. O gado se deslocava conforme o nível dos rios, a infraestrutura era mínima e o uso do solo obedecia à lógica da inundação periódica. Esse modelo, embora longe de ser isento de impactos, manteve por décadas um equilíbrio relativo entre produção e ambiente em um dos biomas mais sensíveis do planeta.

RESUMO

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O Pantanal brasileiro passa por uma transformação significativa em sua estrutura fundiária nas últimas duas décadas. Um cadastro rural consolidado em 2025 revela que grandes grupos econômicos e financeiros assumiram o controle das maiores propriedades do bioma, substituindo fazendeiros tradicionais que mantinham um equilíbrio entre produção e ambiente. O levantamento identificou 356 grandes propriedades rurais no Pantanal, somando 8,9 milhões de hectares. Entre elas, onze ultrapassam 59 mil hectares, com destaque para a Fazenda Cristo Redentor, de 132 mil hectares, controlada pela BRPEC, ligada ao BTG Pactual. A mudança reflete uma nova lógica produtiva, mais intensiva e menos adaptada ao ciclo natural das águas.

Esse arranjo histórico começou a se romper de forma acelerada nas últimas duas décadas. A transformação não se expressa apenas na paisagem, no avanço da pecuária intensiva ou na recorrência de incêndios de grandes proporções, mas aparece de forma objetiva nos dados fundiários mais recentes. Um cadastro rural consolidado em 2025, elaborado a partir do cruzamento de bases oficiais como o Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) e o Cadastro Ambiental Rural (CAR), revela que o topo da estrutura agrária do Pantanal passou a ser dominado por grandes grupos econômicos e financeiros, com controle corporativo da terra, capital intensivo e lógica produtiva cada vez mais dissociada do funcionamento ecológico da planície alagável.

O que revela o cadastro de 2025

O levantamento identifica 356 grandes propriedades rurais com áreas no Pantanal de Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, todas acima de cerca de 11,4 mil hectares. Juntas, essas propriedades concentram aproximadamente 8,9 milhões de hectares, o que dimensiona o peso do estrato superior da estrutura fundiária sobre o bioma. O cadastro não se propõe a ser um censo, mas funciona como uma amostragem qualificada do topo da pirâmide agrária, capaz de revelar quem controla as maiores áreas contínuas e como esse controle vem se reorganizando ao longo do tempo.

Os dados mostram um padrão de concentração extrema. Dentro desse universo restrito, dez propriedades individuais superam 60 mil hectares, formando grandes blocos territoriais que redefinem a escala da ocupação privada do Pantanal. Para o geógrafo Sedeval Nardoque, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Três Lagoas, o cadastro confirma uma transformação estrutural e acelerada. “O Pantanal está trocando de dono”, resume. Segundo ele, o bioma deixou de ser dominado por proprietários tradicionais, enraizados na dinâmica local, para passar às mãos de grandes grupos econômicos e financeiros, muitos deles externos à região.

Na leitura de Nardoque, a concentração fundiária revelada pelo cadastro não é episódica, mas parte de uma lógica de reprodução do capital. A terra pantaneira passa a cumprir três funções centrais. Atua como reserva de valor, adquirida à espera de valorização futura; como ativo financeiro, utilizada como garantia para acesso a grandes volumes de crédito; e como base para conversão ambiental, em que a vegetação nativa perde valor econômico frente à transformação em pastagem. “Não interessa a esses grupos manter o Pantanal em pé”, diz. “O interesse dominante é a substituição da vegetação nativa e a expansão da pecuária, mesmo em um sistema ambientalmente frágil.”

É nesse contexto que a identificação das maiores propriedades individuais ganha significado analítico.

Cadastro fundiário expõe como o Pantanal mudou de dono e de uso do solo
Geógrafo Sedeval Nardoque, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

Grandes áreas, novos controladores

A maior dessas áreas é a Fazenda Cristo Redentor, em Miranda, com 132.660,89 hectares, controlada pela BRPEC (BrPec Agropecuária S.A.), ligada ao banqueiro André Esteves, fundador do BTG Pactual. Sozinha, a propriedade tem área superior à da maioria dos 5.570 municípios brasileiros, tornando-se símbolo da nova escala territorial imposta pelo agro corporativo no Pantanal. As terras foram adquiridas em 2012 do empresário José Carlos Bumlai e passaram a ser integradas à lógica de commodities do agro, com foco em cria, recria e confinamento bovino.

O caso da Cristo Redentor tornou-se emblemático não apenas pela dimensão territorial, mas também pelos conflitos ambientais associados ao modelo de ocupação. Segundo levantamento publicado pelo site De Olho nos Ruralistas, com base em autos oficiais do Ibama, a propriedade foi alvo da maior multa ambiental já aplicada no Pantanal, no valor de R$ 57.999.500, lavrada em 12 de maio de 2018. Independentemente do desfecho jurídico, o episódio expôs os riscos de combinar grande escala territorial, intensificação produtiva e fragilidade ambiental em um sistema altamente dependente da dinâmica hídrica.

Na mesma faixa de grandeza aparece a Fazenda Bodoquena, também em Miranda, com 118.565,60 hectares, sob controle da Companhia Agrícola Orlando Chesini Ometto. Sua trajetória ajuda a compreender a persistência histórica da concentração fundiária no bioma. No pós-Segunda Guerra, a área integrou um megacomplexo agropecuário que ultrapassou 400 mil hectares, com logística própria, pistas de pouso e participação de capital internacional. Vendida e fragmentada ao longo das décadas, a fazenda permaneceu entre as maiores do Pantanal, ilustrando como grandes blocos territoriais se recompõem ao longo do tempo.

Outras grandes áreas individualizadas aparecem em seguida, como a Estância Ecológica Sesc Pantanal, em Barão do Melgaço, com 106.696,49 hectares, voltada integralmente à conservação ambiental, à pesquisa científica e à manutenção da dinâmica natural das cheias, a Fazenda Santa Rosa, em Cáceres, com 105.087,27 hectares, e a Fazenda Santa Otília, em Porto Murtinho, com 88.502,40 hectares. À exceção da área mantida pelo Sesc, as demais operam em escala territorial incompatível com o modelo histórico das fazendas pantaneiras tradicionais, baseadas em baixa intervenção e adaptação às cheias.

Na sequência aparecem três fazendas em Poconé, a Fazenda Rio Alegre, com 87.945,08 hectares, a Fazenda São João, com 71.230,67 hectares, e a Fazenda Campo Lindo, com 63.253,35 hectares, além da Fazenda Uval, em Corumbá, com 63.082,96 hectares, e da Fazenda Fazendinha, em Aquidauana, com 59.746,90 hectares, que fecham o topo. Nenhuma dessas áreas pode ser classificada como pequena ou média. Todas expressam um padrão de ocupação territorial que rompe com a lógica tradicional do Pantanal e reforça a concentração fundiária no topo da estrutura agrária.

Exceções que confirmam a regra

Para Nardoque, o elemento novo não está apenas no tamanho das áreas, mas em quem as controla e como são usadas. Entre as maiores, predominam empresas estruturadas como holdings agropecuárias, com acesso privilegiado a crédito rural subsidiado, cadeias produtivas integradas e forte inserção no mercado financeiro. “A terra passa a funcionar como garantia para crédito. O capital é captado a juros baixos e, muitas vezes, realocado no próprio sistema financeiro”, afirma.

O cadastro de 2025 também evidencia limites estruturais do controle fundiário. O cruzamento entre CAR e SNCR revela fragmentação cadastral, com grandes áreas contínuas registradas como múltiplos imóveis, o que dificulta a fiscalização ambiental e a responsabilização por infrações. Esse quadro se agrava com a fragilidade da fiscalização estatal, denunciada pelos grandes incêndios recentes, e amplia o risco de danos sistêmicos em um bioma cuja estabilidade depende diretamente da dinâmica hídrica.

Na avaliação do pesquisador, o processo tende a se aprofundar. A troca de titularidade das terras continuará, a conversão ambiental deve se acelerar e o Pantanal caminha para se tornar uma planície cada vez mais dominada pela pecuária em larga escala, especialmente sob o impacto da crise climática e hídrica. Leis permissivas, fiscalização frágil e a captura do Estado por interesses fundiários ajudam a explicar a velocidade da transformação.

Na síntese de Nardoque, o Pantanal tornou-se a última fronteira de terra relativamente barata para a expansão da pecuária no Brasil. “O Pantanal está trocando de dono”, resume. “E quem chega não é o pantaneiro tradicional, mas o grande capital, cada vez mais distante da lógica local.”

Ao revelar quem controla o bioma e como essa estrutura se reorganizou ao longo do tempo, o cadastro lança luz sobre um processo silencioso, porém decisivo, a substituição de um sistema produtivo moldado pelas cheias por um agro forte, intensivo e territorialmente concentrado, aplicado a um dos ambientes mais frágeis do planeta. Para muitos pesquisadores, é essa combinação, mudança climática global e transformação do uso do solo em grande escala, que explica por que já se fala, sem exagero, no risco real de um fim do Pantanal como o conhecemos.