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Meio Ambiente

De chapa e cruz: a construção de um lar às margens do rio Paraguai

Paula Maciulevicius | 19/08/2011 12:14

Famílias ribeirinhas que veem no Pantanal uma identidade

Vista de cima da beleza mais exuberante sul-matogrossense. (Foto: Paula Maciulevicius)
Vista de cima da beleza mais exuberante sul-matogrossense. (Foto: Paula Maciulevicius)
O Amolar constrói uma cena de morros em meio à planície pantaneira. (Foto: Paula Maciulevicius)
O Amolar constrói uma cena de morros em meio à planície pantaneira. (Foto: Paula Maciulevicius)

Um modo de vida peculiar aos olhos de quem cresceu no desenvolvimento. Famílias de ribeirinhos seguem a tradição que passa de pai para filho e levam adiante a moradia às margens do rio Paraguai. De "chapa e cruz", expressão que define com clareza o sentimento daquelas pessoas em relação ao Pantanal da Serra do Amolar, nasceram e pretendem colocar a cruz ali.

De longe a família de "seo" Aluísio Rodrigues, na região do Chané já acena para a chegada da embarcação. A dona da casa, Enaurina da Silva, de 48 anos, passa um café da hora, que contemplando o Pantanal parece ter um gosto ainda melhor.

Nascido e criado ali, Aluísio tem 62 anos, diz logo de cara sobre a vida que leva "tem vez que vive bem, tem vez que é sofrimento". O relato é sobre o período de cheia, que este ano atingiu bastante a família, a ponto de terem que se mudar até a cheia passar, coisa rara entre os ribeirinhos, que não deixam o lar por água nenhuma.

"Todo ano tem cheia, o pior foi em maio, 1m e pouco de água que entrou", conta. As idas à cidade são calculadas na ponta do lápis, a passagem de barco sai pesada, em média R$ 60 cada viagem. Se precisa de algo de Corumbá, o jeito é encomendar.

"Eu entrego isca e pesco. A minha profissão mesmo é de pescador, mas quando está difícil a gente vive da isca" acrescenta.

Na casa dividida em três espaços moram 10 pessoas. Aluísio, a esposa, seis filhos e dois genros. A família teve 7 filhos, um deles morreu há pouco menos de 1 ano. "Bebeu e arruinou", descreve o pai.

Mostrando a casa ele aponta para o lado esquerdo e de longe fala que a esposa morava lá em cima quando eles se conheceram e hoje tem mais de 30 anos de casamento.

Dentro de casa o cômodo de cada um, roupas em meio à panelas, e lençol em volta da cama, tudo para se proteger dos mosquitos durante a noite. Na sala, duas meninas e um menino assistem à televisão, que só é possível de ver por conta do gerador movido à combustível, que pode ser ouvido de longe, fora de casa.

Histórias de pescador que se confundem com a vivência pantaneira. O sorriso de Aluísio, que guarda muitos causos às margens do rio. (Foto: Paula Maciulevicius)
Histórias de pescador que se confundem com a vivência pantaneira. O sorriso de Aluísio, que guarda muitos causos às margens do rio. (Foto: Paula Maciulevicius)

Uma cena em particular chama a atenção, em uma caixa de isopor, em meio à roupas, uma galinha bota o ovo, e o "seo" Aluísio explica que se foi ali o lugar que ela escolheu, não pode mexer, é melhor deixar.

A rotina depende da quantidade de iscas pescadas. Ele conta que às vezes sai 7h, volta 1h da tarde e se não precisa de mais, fica em casa mesmo. O trabalho é entregue aos donos de barcos que revendem às lojas especializadas, a maior parte da comercialização é na base da troca, Aluísio entrega, pega alguma mercadoria e fica com crédito.

Ele mesmo ao contar parece não ter bem o controle dessa troca e as mercadorias trocadas, grande parte alimentos, saem caro. "É R$ 0,40 a isca, às vezes junta 400 até 600 por semana, quando junta quatro pessoas na tela. Se é tempo bom chega a mil, quando está fraco dá 200, 300".

Em casa, a filha Roselaine da Silva Rodrigues, de 17 anos, não tira os olhos da TV, é a hora da novela. Ela diz que trabalha e ajuda em casa quando não está fazendo seu programa favorito, de ver televisão. O desejo de ser professora continua, mesmo a menina tendo parado de estudar na 4ª série. "Faz tempo que parei de estudar", completa.

Como todo homem pantaneiro, "seo" Aluísio tem muita história para contar e não ia deixar de mostrar onde a sucuri pegou a filha dele. "Ali que a cobra atacou a Rosa. Daí não tem homem, não tem nada que tire", comenta.

A personagem dessa história é Rosa da Silva Rodrigues, de 23 anos. Há 7 meses ela estava indo para a casa da tia andando por um trecho de terra e água com a irmã menor, quando a sucuri grudou e a derrubou. "Eu segurei e apertei até ela largar. No apuro a gente faz certo", afirma. A moça nunca tinha sido pega por cobra na vida. "Foi um susto".

Para não ficar só na história, Rosa mostra as marcas que a Sucuri deixou. (Foto: Paula Maciulevicius)
Para não ficar só na história, Rosa mostra as marcas que a Sucuri deixou. (Foto: Paula Maciulevicius)

Como quem está de fora sempre tem mais para contar do que viu, o pai acrescenta que a cobra juntou no pescoço de Rosa e que se não fosse um conhecido pular e com o facão cortar a cobra, a menina teria ido.

Histórias de onça também tem. "Seo Aluísio" não esquece quando uma pintada pulou dentro da chalana. "Eu tive que pular de novo, que nem ela, mas pro rio".

A dona da casa, que até então estava tímida, começa a se abrir. Enaurina tem 48 anos, 34 de casada. O sonho de mudar para a cidade cresceu, ainda mais depois de ter perdido um filho. "Quero ver se esse ano eu mudo pra cidade, pelo estudo das crianças também". Com lágrima nos olhos e a foto de Adilson que tinha 31 anos, ela conta como foi para uma mãe perdeu um filho.

"Eu não tive como dar suporte, ele precisava de mim na cidade e eu não tive como descer. Quando eu liguei para saber dele, me disseram que tinha falecido. E eu ainda falei com ele um dia antes, ele disse mãe eu estou ruim e eu falei que ia lá cuidar dele e não deu tempo", descreve.

A dor de perder um filho deixa a vontade de ir para a cidade, tanto pela saúde, quanto pelos estudos.

E é às margens do rio que o "seo" Aluísio, para espantar a tristeza, conta a lenda do minhocão. Segundo ele o que mata mesmo no Pantanal é o minhocão. "Tem focinho de porco, é todo preto e passa rodando. Faz assim na água", diz. Ele conta história de pescador, pescador pantaneiro, que sempre tem um detalhe a mais. "Ele cavuca aí e com focinho ele vem e chupa o sangue. Assim que ele mata. Mesmo se a gente tiver aqui, na sombra ele pega", continua.

A risada e a luta da mulher pantaneira estampadas no rosto de Enaurina. (Foto: Paula Maciulevicius)
A risada e a luta da mulher pantaneira estampadas no rosto de Enaurina. (Foto: Paula Maciulevicius)

Verdade ou mito, mas a questão é que nenhum homem pantaneiro é corajoso diante do minhocão. Pode enfrentar cheia, onça e sucuri, mas o minhocão é de dar medo.

Um pouco mais adiante, na barra do São Lourenço, outra família ribeirinha que representa bem os nativos da região. Ao chegar na casa da matriarca Joana Íris de Souza, de 89 anos, já se escuta o rádio ligado.

A filha Tarsiana de 41 anos é quem recebe a equipe de reportagem do Campo Grande News, envergonhada ela diz que está de qualquer jeito para aparecer na televisão e ajeita os cabelos. A cheia deste ano parece ter deixado marcas, não só nas casas, como nos próprios ribeirinhos. "Foi péssima a cheia, perdeu tudo em casa, eu quero consertar ainda mas vou ter que esperar", diz Tarsiana Íris de Souza.

A vida é ganha com a venda de iscas e o cartão dos programas sociais das crianças. "Quero reconstruir a minha casa, mas não tenho condições. Deus conduz, tem que comprar de pouco em pouco. Fazia anos que não enchia assim", completa.

Mas aos olhos da pantaneira, o lugar ainda é a casa. "O Pantanal é muito bom. Fica ruim em tempo de mosquito, daí tem que acender fogo para espantar".

89 anos de sabedoria, grande parte deles passados na barra de São Lourenço, no Pantanal. (Foto: Paula Maciulevicius)
89 anos de sabedoria, grande parte deles passados na barra de São Lourenço, no Pantanal. (Foto: Paula Maciulevicius)

O menininho da casa, Alisson, tem 1 ano e anda por tudo. Com brinquedo nas mãos, vem mostrar como quem diz vem brincar comigo. De cara se mostra bem dado às câmeras. Quem conta a história do menino é a dona Joana, bisavó da criança. A mãe morreu logo depois do parto, por problemas de pressão.

Histórias, ainda mais de parto é o que não falta à essa simpática senhora, que nascida em Cuiabá, mesmo depois de muitos anos no Pantanal, ainda não perdeu o sotaque. E nem o gosto pela comida. "Eu gosto de maxixe com peixe", conta rindo.

Aos 89 anos, lúcida e boa de prosa, dona Joana está numa cadeira de rodas, o que não a impede de puxar conversa. "Chega um que conversa, vem falar aí eu fico alegre. Vem outro e faz eu rir, assim eu vou vivendo". Com netos e bisnetos "para jogar fora", diz, por conta da quantidade, ela chega mais para lá no banco, para dar espaço aos visitantes.

"O tempo vai passando, eu cheguei aqui com eles crianças, agora estão tudo velho já, mas a vovó está velha também", fala dando risada.

Mãe de 7 filhos, dona Joana ajudou muita gente a dar a luz. Foram 52 partos feitos só ali, na comunidade de São Lourenço. "É Deus e eu, ninguém mais. Eu lembro de Deus e enfrento tudo", ensina. Com a ajuda de Nossa Senhora ela diz que todos nasceram perfeitos, sem nenhum problema.

Entre risos e brincadeiras, o pequeno Alisson brinca de esconde e esconde com a câmera. (Foto: Paula Maciulevicius)
Entre risos e brincadeiras, o pequeno Alisson brinca de esconde e esconde com a câmera. (Foto: Paula Maciulevicius)

A idade chegou e as forças acabaram, segundo a matriarca. "Mas também agora é gemeu e vai para Corumbá. Acabou a força das mulheres. Aquela moça lá eu que tirei e tudo no meio do mato", fala apontando para a neta Raiane, de 16 anos.

Em casa, ela espera o peixe. Prato típico pantaneiro pela facilidade e também por não precisar armazenar. A tarefa de pescar para comer traz peixe fresquinho para a mesa do ribeirinho a cada refeição. Por não ter como comprar e nem onde guardar, as famílias se adaptaram à alimentação sem verduras e hortaliças. A base é peixe, arroz e um pouco de mandioca.

"Ele está pegando a isca e trazendo o peixe", diz sobre o marido. Quando surgiu a pergunta de quantos anos tem o companheiro, o bom humor não podia ficar de lado. "Sabe que eu nunca perguntei para ele? Sei que é mais novo", e dá aquela gargalhada.

Sobre cobras e onças ela logo tem história para contar. "Nossa, quando bate, pega. Esses dias mesmo uma onça comeu um bezerro lá para baixo. Deus me livre, mas é o que mais tem aqui", finaliza.

Vista da família de Aluísio e as ferramentas que usa no trabalho de pescador. (Foto: Paula Maciulevicius)
Vista da família de Aluísio e as ferramentas que usa no trabalho de pescador. (Foto: Paula Maciulevicius)
A sombra da árvore no rio, cena vista da cadeira de dona Joana. (Foto: Paula Maciulevicius)
A sombra da árvore no rio, cena vista da cadeira de dona Joana. (Foto: Paula Maciulevicius)
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