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Reportagens Especiais

Na era do Whatsapp, golpe do “advogado fake” se espalhou por MS em 2025

Com mais de mil casos no ano, tema reacende debate sobre letramento digital e responsabilidade das big techs

Por Mylena Fraiha | 31/12/2025 14:15
Na era do Whatsapp, golpe do “advogado fake” se espalhou por MS em 2025
Campo-grandense utiliza a internet no celular no Centro da Capital; redes sociais e ligações foram os principais meios para aplicação de golpes em 2025 (Foto: Marcos Maluf).

Basta uma mensagem no WhatsApp, a foto de um advogado conhecido e a promessa de dinheiro prestes a cair na conta. Foi assim que o idoso, de 62 anos, morador de Dourados, cidade a 251 km da Capital, perdeu R$ 112 mil ao acreditar que havia vencido um processo judicial.

RESUMO

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Em 2025, Mato Grosso do Sul registrou cerca de mil denúncias do "golpe do falso advogado", esquema em que criminosos se passam por profissionais do direito para aplicar fraudes via WhatsApp. A OAB-MS registrou prejuízos superiores a R$ 234 mil em apenas 15 dias de novembro. O golpe consiste em contatar vítimas, principalmente idosos, alegando vitória em processos judiciais. Os criminosos usam dados públicos e fotos de advogados reais para dar credibilidade à fraude, exigindo pagamento de supostas taxas via Pix. A OAB-MS criou uma plataforma de denúncias e moveu ação contra empresas de telefonia e redes sociais para coibir as práticas criminosas.

Do outro lado da tela, o golpista seguiu um roteiro já conhecido. Fez ligação via WhatsApp, na qual se apresentou como seu advogado e informou sobre uma suposta decisão favorável em um processo contra o Detran (Departamento Estadual de Trânsito).

O criminoso mentiu que o valor estava “liberado”, mas exigiu pagamentos prévios para taxas e custas judiciais, sob pena de o montante ser tributado. Confiando na conversa, o idoso realizou três transferências bancárias que somaram R$ 112 mil. Em poucos minutos, a vítima, que não teve a identidade revelada, fez transferências via Pix.

Esse passo a passo se repetiu ao longo do ano em Mato Grosso do Sul. Criminosos passaram a se apresentar como advogados reais, ao usar dados públicos, fotos e até números de processos para dar veracidade à abordagem.

O contato geralmente ocorre por WhatsApp ou ligação telefônica, com tom de urgência e pressão emocional. As vítimas são orientadas a não procurar o fórum ou o profissional, “para evitar atraso”, e acabam por transferir valores que variam de centenas a dezenas de milhares de reais.

Na era do Whatsapp, golpe do “advogado fake” se espalhou por MS em 2025
Golpista finge ser advogada de Campo Grande em falso aviso de causa ganha (Foto: Arquivo/ Campo Grande News)

Os números dimensionam o problema. Apenas em menos de um mês após o lançamento de plataforma de denúncia, no final de abril deste ano, a OAB-MS (Ordem dos Advogados do Brasil de Mato Grosso do Sul) registrou 301 denúncias do chamado “golpe do falso advogado” no Estado. Ao longo de 2025, esse volume cresceu e chegou a cerca de 1 mil registros, somando relatos de vítimas e de advogados que tiveram seus nomes e imagens usados indevidamente.

Ao longo do ano, reportagens do Campo Grande News mostraram os prejuízos causados por golpes aplicados por falsos advogados, tanto no interior quanto na Capital. Em novembro, uma das matérias revelou que, em apenas 15 dias, vítimas em Mato Grosso do Sul somaram perdas de R$ 234.336,64.

O caso mais recente ocorreu em Campo Grande, no dia 3 de dezembro, e envolveu uma moradora do bairro Monte Castelo, que perdeu mais de R$ 31 mil. Segundo o boletim de ocorrência, o pai da vítima recebeu uma ligação de um homem que se apresentou como advogado e afirmou que valores de um processo judicial haviam sido liberados. Como o idoso havia passado por cirurgia, repassou o telefone à filha.

O golpista orientou a mulher a fazer transferências via PIX para “movimentar” a conta e viabilizar o depósito judicial. Ao todo, ela realizou transações que ultrapassaram R$ 31 mil. Inclusive, transferências para uma pessoa física, uma empresa e, após clicar em um link falso do suposto Tribunal de Justiça, teve a conta invadida. O golpe só foi percebido quando o valor prometido não foi creditado. A vítima registrou ocorrência.

Além dos clientes, advogados também têm sido alvo dos criminosos. No fim de novembro, a advogada previdenciarista Luciana Modesto Nonato Mendonça teve sua imagem e dados usados por golpistas que se passavam por ela para tentar enganar vítimas. A foto foi retirada de seu perfil no Instagram e associada a um número falso.

“Utilizaram a minha foto e criaram outro número. Como não uso aquela imagem no WhatsApp, as pessoas começaram a me avisar”, relatou. Assim que descobriu o golpe, Luciana publicou alertas nas redes sociais para informar os clientes. “Graças a Deus, ninguém caiu. Quando a gente divulga, eles desistem e procuram outra vítima”, afirmou.

Denúncias – Com o aumento dos casos, a Comissão de Direito Previdenciário da OAB-MS (Ordem dos Advogados do Brasil Seccional de Mato Grosso do Sul) criou uma subcomissão específica para levantar informações sobre os golpes praticados em Mato Grosso do Sul.

Segundo a presidente da comissão, Amanda Ortiz Pompeu, os primeiros relatos surgiram em 2023, mas se intensificaram no fim de 2024 e início de 2025. “Logo na nossa primeira reunião da Comissão de Direito Previdenciário, lá pelo mês de março de 2025, nós já estávamos vivenciando casos de golpes que tiveram um salto”, afirmou.

A comissão decidiu, então, sistematizar os relatos recebidos. “Foi a partir daí que surgiu a ideia de elaborar um relatório contendo os casos que foram noticiados a nós”, explicou Amanda. A coleta de dados ocorreu entre abril e setembro de 2025, com apoio direto de advogados previdenciaristas, por meio de um grupo criado no WhatsApp para envio de prints, relatos e registros de ocorrências. O relatório final, com mais de 16 páginas, foi entregue à diretoria da OAB-MS no fim de agosto.

De acordo com Amanda, a advocacia previdenciária foi a mais atingida por atender aposentados e pensionistas, público mais vulnerável. “Nós atuamos com pessoas de baixa instrução, muitos idosos, em demandas relacionadas ao INSS”, disse.

O golpe mais comum envolve RPV (Requisição de Pequeno Valor) e precatórios. “Os criminosos se passavam pelos advogados e entravam em contato dizendo que a pessoa havia ganhado a ação e que o valor estava liberado”, relatou.

Ela explica que, como os processos geralmente não correm em sigilo, os dados são públicos, o que facilita a fraude. Os golpistas informavam o número real do processo e exigiam pagamento prévio, geralmente via PIX, chegando a se passar por servidores do Judiciário. Após o depósito, o contato era bloqueado.

Além do prejuízo financeiro, os golpes afetaram a imagem dos profissionais. “Mesmo quando o nome do advogado não era diretamente utilizado, o dano à imagem e ao relacionamento com o cliente acontecia”, afirmou Amanda.

Diante do cenário, neste ano foi criado um link de denúncia no site oficial da OAB/MS, na página inicial, com um botão vermelho “Denuncia Falso Advogado”, que pode ser acessado neste link.

Na era do Whatsapp, golpe do “advogado fake” se espalhou por MS em 2025
Amanda durante fala em evento da OAB-MS; ela aponta que a advocacia previdenciária foi a mais atingida por atender aposentados e pensionistas (Foto: Redes sociais).

A iniciativa complementa outras medidas já adotadas pela OAB nacional para conter fraudes. A página regional da ordem tem campo para denúncias. Em abril, a OAB Nacional lançou uma campanha de conscientização e combate ao golpe, com destaque para a plataforma digital ConfirmADV, que permite verificar a identidade de advogados. Ela pode ser acessada neste link.

Ao acessar o site, o cidadão informa o número de inscrição na OAB, o estado de registro e o e-mail do suposto advogado. O sistema envia automaticamente uma solicitação ao profissional, que tem até cinco minutos para confirmar os dados. Se a resposta ocorrer dentro do prazo, o cidadão recebe a autenticação validada; caso contrário, ambos são notificados de que a verificação não foi concluída.

Outra orientação dada por Amanda é para que clientes não realizem pagamentos e confirmem qualquer informação diretamente com o advogado ou no escritório. Em caso de tentativa ou consumação do golpe, a recomendação é registrar boletim de ocorrência. “A imagem profissional é o principal patrimônio do advogado e, quando alguém se passa por ele, isso configura crime”, concluiu.

Além disso, a OAB-MS ingressou com ação civil pública contra empresas de telefonia, a Meta e instituições financeiras para coibir os golpes. Conforme dito pelo presidente da OAB-MS, Bitto Pereira, a ação foi protocolada na Justiça Federal, após decisão tomada em sessão extraordinária do Conselho Seccional da Ordem, realizada em outubro deste ano.

No dia 4 de novembro, a Justiça Federal deferiu parcialmente o pedido e determinou que as operadoras de telefonia criem um canal específico para denúncias e bloqueiem, em até 24 horas, linhas usadas no chamado “golpe do falso advogado”.

Como advogada, Amanda aponta que as big techs, como é o caso da Meta, devem ser responsabilizadas. Ela destaca que, no levantamento, foi identificada a dificuldade de contato com plataformas digitais. “Uma das maiores dificuldades que nós tivemos e ainda temos é o contato direto com essas grandes empresas, que não possuem canais específicos para a advocacia”, disse.

De acordo com Amanda, denúncias feitas a aplicativos de mensagens raramente tinham retorno, e não havia informações sobre a continuidade da linha ou a identificação dos responsáveis.

Quem deve ser responsabilizado? – Para o advogado especialista em direito digital Raphael Chaia, a ação movida pela OAB-MS contra a Meta, dona do WhatsApp e do Instagram, está diretamente ligada à nova interpretação do artigo 19 do Marco Civil da Internet, definida pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em junho deste ano.

No dia 26 de junho, o órgão considerou parcialmente inconstitucional o artigo 19 da Lei nº 12.965/2014, que condicionava a responsabilização das plataformas ao descumprimento de ordem judicial específica. Por maioria, a Corte entendeu que a regra já não é suficiente para proteger direitos fundamentais e a própria democracia.

Segundo Chaia, antes da decisão, a responsabilidade recaía quase exclusivamente sobre o usuário. “No artigo 19, ficava estabelecido que a responsabilidade era do usuário, nunca da empresa, a não ser que houvesse descumprimento de uma ordem judicial para exclusão do conteúdo”, explicou.

Na prática, isso tornava difícil responsabilizar plataformas em casos como o golpe do falso advogado, já que era necessário acionar a Justiça e comprovar o descumprimento da decisão. Com o novo entendimento, esse cenário mudou.

Se a empresa não tomar providências após ser comunicada, passa a responder de forma corresponsável. “O que mudou é que não preciso mais de uma ordem judicial. Basta que a própria vítima notifique a empresa para que ela seja obrigada a tomar providências”, reforçou.

Na prática, porém, a responsabilização ainda depende da iniciativa da vítima. “A pessoa precisa notificar a plataforma após sofrer o golpe. Se a empresa não tomar providências, passa a responder de forma corresponsável”, explicou. A notificação pode ser feita, por exemplo, por canais como o consumidor.gov ou ações nos Juizados Especiais.

Na era do Whatsapp, golpe do “advogado fake” se espalhou por MS em 2025
Raphael Chaia durante palestra na sede da OAB-MS, em Campo Grande; ele explica como é feita a resposabilização das big techs em casos de golpe (Foto: Redes sociais).

Sobre tratamento de dados e leis na internet, Chaia avalia que o Brasil tem legislação avançada na área digital, como o Marco Civil da Internet, a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais) e a adesão à Convenção de Budapeste. Apesar disso, a responsabilização por vazamento de dados ainda enfrenta entraves. “O STJ entende que não cabe dano presumido. A vítima precisa provar prejuízo concreto”, disse.

Embora o Brasil tenha uma legislação avançada de proteção de dados, Chaia afirma que a lei, sozinha, não é suficiente. “Muitos responsáveis pelo tratamento de dados não adotam as medidas necessárias”, disse, ao citar vazamentos em bancos, órgãos públicos e autarquias. “A questão já não é saber se os dados vão vazar. Eles já vazaram. A questão é quando eles vão ser usados”, alertou.

Ele explica que, por isso, a ação da OAB não se baseia no vazamento, mas no uso indevido de nome e imagem. “O fundamento é justamente a nova interpretação do artigo 19”, concluiu.

Outro problema, segundo ele, está na educação digital. Na maioria dos golpes, aponta, há falta de letramento digital da vítima. “Não saber identificar link falso, oferta boa demais para ser verdade ou o golpe do falso advogado”, disse.

Ele também aponta que a dificuldade geracional de lidar com a tecnologia, especialmente entre os mais velhos, aumenta o risco de cair em golpes. “As pessoas se digitalizaram antes de se alfabetizarem digitalmente. Isso cria um contingente enorme de pessoas vulneráveis, especialmente aposentados e pensionistas, que são os principais alvos dos golpistas”.

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