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Reportagens Especiais

Super organizadas, facções venceram o Estado nas fronteiras e na economia

Com Sisfron inoperante, PCC e CV avançam de Mato Grosso do Sul à Faria Lima infiltrados na política e mercado

Por Vasconcelo Quadros, de Brasília | 31/12/2025 06:44


O ano ficará marcado como período em que o país foi surpreendido pelo empoderamento das duas principais facções criminosas, o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), infiltradas na política, na economia e nas estruturas do próprio Estado, como mostrou a prisão do presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, Rodrigo Bacellar (União Brasil), suspeito de envolvimento com outro parlamentar preso, Thiego Raimundo dos Santos, o TH Joias, acusado de lavar dinheiro para a organização carioca.

RESUMO

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O crime organizado no Brasil alcançou níveis alarmantes em 2025, com PCC e Comando Vermelho infiltrados na política, economia e estruturas estatais. Dados da CPI do Crime Organizado revelam 90 facções ativas no país, sendo 14 com alcance regional, dominando especialmente as fronteiras com Bolívia e Paraguai. O Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron), principal projeto de vigilância fronteiriça, apresenta apenas 30% de execução após 13 anos. Enquanto isso, as facções expandiram suas operações, movimentando R$ 335 bilhões anuais com cocaína, equivalente a 3,98% do PIB, transformando o Brasil no segundo maior mercado mundial da droga.

Dados apresentados à CPI do Crime Organizado revelaram também a existência de 90 facções ativas nos 27 Estados e no Distrito Federal, sendo 14 com alcance regional, puxadas justamente por PCC e CV, já com atuação internacional.

As duas romperam há tempos o eixo Rio São Paulo, fincando bases e entrepostos de cocaína e armas na faixa de fronteira que separa Mato Grosso do Sul da Bolívia e do Paraguai, um hub estratégico para os negócios do crime, historicamente distante do alcance efetivo das polícias.

O quadro se agravou com a constatação, feita pelo ministro da Justiça e da Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, de que, embora a segurança pública tenha se tornado a principal preocupação dos brasileiros, o governo federal não dispõe de um plano estruturado, carece de recursos e falha na integração entre forças policiais. Foi justamente nesse ambiente de desorganização estatal, despreparo institucional e contaminação das polícias que o crime prosperou.

O “muro virtual” que nunca saiu do papel

Há, no entanto, uma omissão gritante revelada com a inclusão da segurança na agenda política este ano. Apontado como a principal aposta do Estado brasileiro para vigiar cerca de 17 mil quilômetros de fronteiras secas com dez países, o Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron) acumulou atrasos, falhas estruturais e abandono orçamentário.

Concebido em 2008 e implantado a partir de 2012, o projeto deveria funcionar como um “muro virtual”, baseado em satélites, radares e centros de comando capazes de orientar ações pontuais contra o tráfico de drogas, armas e o contrabando. Treze anos depois, apenas cerca de 30% do cronograma original foi executado, com investimentos estimados em R$ 11 bilhões, segundo avaliações apresentadas no Senado.

Entre os parlamentares que mais insistiram no tema, o senador Angelo Coronel (PSD BA) tornou-se uma das vozes mais críticas ao imobilismo estatal. Ele relatou torres deterioradas, equipamentos inoperantes e até furtos de estruturas do próprio Exército. Diante desse cenário, o comando militar já admite a necessidade de uma reavaliação completa do sistema, o que empurrou, informalmente, a previsão de conclusão para 2065.

“É um absurdo”, resumiu o senador, ao apontar que, sem recursos e pressão política, o Sisfron se transformou em símbolo da incapacidade do Estado de atacar o problema na origem. Indagado sobre a utilidade prática do sistema numa fronteira dominada por facções, o diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, foi direto: “Temos pouco proveito para a segurança pública. Talvez seja um caminho a ser dialogado no governo para ampliação”.

Super organizadas, facções venceram o Estado nas fronteiras e na economia
Marcinho VP, líder do CV, entrando em camburão durante transferência para Campo Grande, em janeiro do ano passado (Foto: Senappen/Divulgação)

O avanço das facções no vácuo do Estado

Enquanto o Estado patinava, PCC e CV avançaram. Localizada na faixa de fronteira de Mato Grosso do Sul, Iguatemi emergiu em 2025 como uma das peças territoriais mais reveladoras da engrenagem da facção paulista.

A partir do município, a Operação Carbono Oculto expôs como o PCC consolidou um modelo que conecta a fronteira internacional, onde se concentram drogas e armas, aos circuitos financeiros formais do Sudeste. Mais do que um episódio localizado, o caso ajudou a revelar Mato Grosso do Sul como território estratégico da holding criminosa em que o PCC se transformou.

A investigação escancarou a metamorfose de uma facção nascida no sistema prisional paulista, nos anos 1990, em um conglomerado capaz de operar no coração do capitalismo brasileiro. Parte relevante do dinheiro passou a circular por empresas de fachada, distribuidoras de combustíveis, fintechs, fundos de investimento e operadores financeiros instalados na Avenida Faria Lima, em São Paulo.

O que antes se associava a periferias, presídios e rotas do tráfico internacional passou a dialogar com estruturas societárias complexas e mecanismos sofisticados de lavagem de dinheiro.

A economia silenciosa da cocaína

A Carbono Oculto revelou uma estratégia de verticalização criminosa, integrando tráfico, logística, lavagem e reinvestimento de capitais. Nesse desenho, o setor de combustíveis, intensivo em circulação de dinheiro e de difícil rastreabilidade, apareceu como pilar central. Iguatemi funcionava como elo sensível de um circuito financeiro que conectava o centro econômico do país à faixa de fronteira internacional.

A produção de coca se concentra na Colômbia (66%), no Peru (23%) e na Bolívia (11%), mas o centro econômico da cadeia se deslocou. O Brasil deixou de ser apenas rota e passou a atuar como ponto global de refino, distribuição e consumo. Estimativas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicam que o mercado da cocaína movimenta R$ 335 bilhões por ano, o equivalente a 3,98% do PIB.

Autoridades estimam que 80% da cocaína e da maconha entram no país por Mato Grosso do Sul. Até outubro, a Polícia Federal apreendeu 70 toneladas de cocaína, das quais quase 23% (16 toneladas) no Estado, volumes avaliados em R$ 6,17 bilhões e R$ 1,41 bilhão, respectivamente. Ainda assim, o que é confiscado representa cerca de 5% do que efetivamente circula. As estatísticas também escancaram a desintegração estatal: a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, a Receita Federal e as polícias estaduais têm números independentes e não se fundem.

O sistema que sobrevive à repressão

Mapeamento inédito divulgado em outubro identificou 550 laboratórios de refino e adulteração entre 2019 e 2025, segundo a pesquisa Floresta em Pó. Em Mato Grosso do Sul foram localizados 20. Como as apreensões atingem apenas de 10% a 20% do mercado, projeta-se a existência de mais de 5 mil estruturas ativas no país. Só a etapa brasileira de refino pode movimentar US$ 6 bilhões por ano, cifra comparável ao faturamento de grandes empresas nacionais.

Os impactos aparecem também nos indicadores sociais: com 950 mil presos, 30% por crimes ligados a drogas, o tráfico está por trás da violência que resultou em 6.243 mortes por ações policiais em 2024, incluindo a mais letal operação já registrada contra o CV, no Rio, com 122 mortos. Ao mesmo tempo, o consumo cresce: o Brasil já é o segundo maior mercado mundial de cocaína, com 11,4 milhões de pessoas que já consumiram a droga.

Um desafio que deixou de ser apenas policial

Ao expor conexões entre crime organizado, fronteiras e estruturas empresariais do eixo financeiro paulista, a Carbono Oculto deslocou a narrativa. O problema deixou de ser apenas policial e passou a ser econômico, territorial e institucional. Mais do que prender operadores, revelou o desafio de desmontar uma engrenagem que controla rotas, circula capitais e se protege como corporação transnacional.

Apesar da inoperância histórica dos governos, há sinais de reação. A CPI do Crime Organizado deve encerrar seus trabalhos no próximo ano com diagnóstico e propostas objetivas. Um passo relevante foi o substitutivo do senador Alessandro Vieira ao PL Antifacção, que institui contribuição sobre as bets, com arrecadação estimada em R$ 30 bilhões anuais, destinada exclusivamente ao desmonte das facções criminosas.