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Agronegócio não resolveu a fome e só traz prejuízo à população

Paulo Kliass | 22/09/2013 15:11

Algumas notícias divulgadas pela imprensa nos últimos tempos têm apresentado sua contribuição para um debate fundamental. Já passou da hora de encararmos com coragem a questão da qualidade de tudo aquilo que comemos e de sua relação estreita com outros aspectos de nossa vida, seja no plano individual, seja na organização em sociedade. Afinal, a frase “somos o que comemos” é atribuída a Hipócrates, há mais de 2 mil anos atrás.

A pesquisa periódica realizada pelo Ministério da Saúde (Vigitel) revela que 51% da população apresentam sobrepeso e que 17% já atingiram o limite da obesidade. Um dos principais fatores para esse quadro de agravamento da saúde é a alimentação, segundo os especialistas. Na pesquisa de 2006 os índices eram, respectivamente, 46% e 11%. Esses dados só fazem confirmar as hipóteses de que nem sempre a melhoria no quadro de distribuição de renda tem como contrapartida um avanço efetivo em termos de qualidade de vida.

Um conhecido profissional e divulgador da gastronomia conseguiu comprovar aquilo que boa parte dos meios mais esclarecidos já sabia há muito tempo. O processo de fabricação dos alimentos de um importante conglomerado mundial de lanches rápidos é uma falácia, que provoca prejuízos à saúde de quem para ali se dirige com objetivo de realizar suas refeições. A utilização de produtos impróprios ao consumo humano é prática corrente no setor de alimentos e envolve também o consumo de ingredientes nos estabelecimentos de varejo, para elaboração das refeições em ambiente doméstico.

Alimentação e riscos para a saúde

Os riscos a que os indivíduos estão submetidos vão desde a ingestão de ingredientes tóxicos derivados do processo de industrialização de comidas e bebidas até a exposição de seu organismo a substâncias venenosas presentes nos alimentos adquiridos no comércio. No primeiro caso, trata-se de processos de transformação das matérias-primas envolvendo produtos considerados estranhos ao ciclo alimentar e que atuam como maximizadores da suposta “eficiência” produtiva industrial. No segundo caso, são considerados os produtos que incorporam derivados de agrotóxicos, fertilizantes, vacinas, hormônios artificiais, produtos transgênicos e tantas outras transformações associadas ao modo não-orgânico e artificial de operar as atividades agrícola, avícola e pecuária.

Todo esse processo de transformação da forma pela qual o ser humano se alimenta não é novidade. Na verdade, obedece a um processo histórico de desenvolvimento das formas de viver e produzir em sociedade, desde quando deixamos de ser simples coletores e caçadores no ambiente natural. Ocorre, porém, que alguns limites começam a ser ultrapassados nessa busca insana do avanço tecnológico e da chamada “dominação do homem sobre a natureza”. Assim como o aprofundamento da produção industrial compromete cada vez mais o meio-ambiente por conta dos diferentes mecanismos de poluição, as soluções para a alimentação também começam a apresentar a sua fatura.

Uma consequência trágica e evidente refere-se à saúde pública. A alimentação derivada do processo industrial descontrolada obedece ao interesse do lucro e não às necessidades da maioria da população. Basta lembrarmos os efeitos provocados pelas campanhas da década de 1960, quando as multinacionais dos alimentos começaram a divulgar os “benefícios” do leite em pó para bebês. Apesar de ter seu espaço de aceitação reduzido atualmente, o fato é que várias gerações foram prejudicadas por evitarem a amamentação com leite materno e adotarem o leite em pó. Para tanto, criou-se o conhecido “consenso dos especialistas” em torno das especificidades das questões técnicas. Leite em pó era considerado melhor em termos nutricionais, e ponto final.

Indústria alimentícia e transgênicos

A saúde das pessoas também está sendo seriamente comprometida em razão da ingestão crescente e descontrolada desse universo de produtos industrializados que desrespeitam o equilíbrio natural e metabólico. Cada vez mais se lança mão de produtos contendo em suas fórmulas todo o tipo de substâncias artificiais, sempre atuando como corantes, acidulantes, flavorizantes, antioxidantes, emulsificantes, umectantes, aromatizantes, estabilizantes etc. e tal.

O princípio jurídico da precaução deveria ser uma condição sine quae non para enfrentar a generalização do uso de alimentos envolvendo experiências com sementes geneticamente modificadas. Isso significa que a aceitação dos possíveis benefícios proporcionados pelo desenvolvimento científico e tecnológico deveria ser precedida pela confirmação experimental a respeito da ausência de danos para a saúde dos indivíduos. Porém, o poderoso “lobby” da indústria de vários setores (agronegócio, alimentação, química, entre outras) tem conseguido vitórias importantes para fazer valer seus interesses. Os malefícios para a saúde pública só são sentidos nas gerações seguintes, como é o caso das evidências de elevadas taxas de incidência de patologia cancerígena de diversos tipos.

O argumento econômico também é incorporado ao debate. Haveria ganhos de escala no uso intensivo do transgênico, além da aplicação intensiva de fertilizantes e herbicidas – o exemplo mais gritante foi a chamada “revolução verde”, que deixou um rastro terrível de danos para o ambiente e para as pessoas. Hoje em dia, o uso indiscriminado de transgênicos também surge camuflado com a suposta racionalidade de um inexistente ganho de eficiência. Tudo aquilo que eventualmente se consegue com a redução dos custos unitários da produção em larga escala é perdido na sequência das inúmeras etapas intermediárias, até a chegada à mesa para ingestão. A comercialização em regime de oligopólio permite a manipulação de preços e a manutenção de altas taxas de retorno. A dependência face às complexas estruturas de financiamento incorpora custos de natureza financeira a um tipo de produto que todos poderiam ter em seus próprios quintais ou em hortas comunitárias da vizinhança.

A alternativa da agricultura sustentável

Ora, está mais do que comprovado que a adoção do modelo do agronegócio, com o uso de todos os recursos proporcionados pelo desenvolvimento tecnológico comprometedor da saúde e do meio ambiente, não resolveu os problemas da fome no mundo. Com exceção dos ganhos econômicos obtidos pelas empresas intervenientes no complexo, o modelo só traz prejuízos à humanidade. Essa é uma das razões pelas quais começam a ganhar expressão sistemas alternativos de produção de alimentos, com incorporação de novos valores e pressupostos. Ao invés de propriedades de grande extensão, voltam à cena propostas vinculadas ao pequeno produtor e à agricultura familiar. Os alimentos ganham em qualidade e o conjunto da sociedade é beneficiado por ser um modelo gerador de emprego, mantenedor de práticas agrícolas tradicionais, capaz de assegurar e multiplicar a renda no nível local. É o exemplo positivo da sustentabilidade em sua abordagem mais integral: econômica, social, cultural e ambiental.

Mas para que essa maneira de organizar a produção de alimentos se consolide, é necessário que haja medidas de estímulo nesse sentido. A educação e a conscientização são aspectos essenciais para se garantir uma abordagem distinta e uma nova cultura das gerações a seguir face à alimentação. Por outro lado, cabe ao Estado oferecer o exemplo concreto de que é possível outra forma de lidar com a questão da alimentação. Para tanto, o setor público (nos níveis federal, estadual e municipal) deveria criar as condições para o consumo da produção alimentícia nessas novas bases. Em economês, poderíamos dizer que a ação governamental gera uma demanda, com o objetivo de assegurar a continuidade da oferta no médio e longo prazos.

Algumas prefeituras já tomaram esse tipo de iniciativa. Basta determinar que toda a aquisição de alimentos e toda a operação da rede de restaurantes e lanchonetes no âmbito da administração pública devam ter como fornecedores produtores vinculados a programas de cooperativas e agricultura familiar, com exigência de padrões de agricultura orgânica e ecológica. Com isso estariam abrangidas áreas como a própria estrutura governamental (restaurantes para funcionários), a rede escolar de todos os níveis (desde as creches até as universidades), a rede hospitalar e de saúde, os restaurantes populares e comunitários, entre tantos outros setores.

Como sempre, as alternativas técnicas existem e estão à disposição. O que falta é a vontade política de colocar em marcha um modelo distinto, que ofereça à população uma alternativa mais econômica, saudável e sustentável de assegurar nossa própria alimentação. Para alcançar tal objetivo, o Estado deve lançar mão de políticas públicas integradoras que permitam ganhos da qualidade em termos de produção de alimentos, geração de emprego, melhoria nos padrões de saúde e menor comprometimento do meio ambiente.

* Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.

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