Carta aberta a quem se pergunta se deve pesquisar em meio aos escombros
Talvez você tenha chegado até aqui porque quer ser pesquisador. Talvez porque algo em você, silencioso e insistente, começou a pedir mais do que respostas prontas. Talvez porque o mundo, em sua velocidade brutal, tenha deixado pequenas rachaduras pelas quais entrou uma pergunta que não te larga mais. Mas talvez também porque você está em dúvida. Porque se pergunta se esse é realmente o seu caminho. Porque olha para a vida acadêmica com fascínio e medo ao mesmo tempo.
Porque se questiona se vale a pena atravessar um percurso tão difícil, tão exigente, tão tortuoso. E, sobretudo, porque sente o peso de viver em um país que não valoriza a pesquisa nem o saber crítico, um país que frequentemente confunde pensamento com ameaça, ciência com gasto, crítica com inimigo.
Mesmo assim, você chegou até aqui. E esse simples fato já diz algo sobre você. Diz que há em você um tipo raro de inquietação, desses que não se contentam com a superfície das coisas. Diz que talvez você pertença ao pequeno grupo de pessoas que ainda querem entender o mundo, mesmo quando o mundo parece não querer ser entendido. Diz que talvez você tenha percebido que pesquisar é uma forma de caminhar na escuridão com uma vela acesa, mesmo quando o vento insiste em apagá-la.
Ser pesquisador, hoje, é aprender a caminhar por um território onde quase nada está garantido. Não há trilhos firmes, placas de segurança ou rotas luminosas. Há, ao contrário, um terreno irregular feito de incertezas, pressões e disputas silenciosas. Em muitos momentos, você vai se sentir só. Vai observar colegas tomados pela corrida dos pontos, dos editais, das métricas, dos prêmios, dos cliques.
Vai testemunhar a transformação da pesquisa em um fim em si mesma, convertida em números que ninguém lê, em congressos que ninguém escuta, em competições que alimentam vaidades mais do que pensamentos. E vai ver, com uma dor que só cresce, a universidade sendo dobrada pelo mercado, pelo governo e pelo capital.
Mas se essa inquietação te trouxe até aqui, talvez não tenha sido por acaso. Talvez você seja um desses seres raros que ainda insistem em perguntar. Um desses corpos um pouco teimosos, um pouco incômodos, que não se conformam com a ordem das coisas. Talvez você esteja prestes a seguir a trilha torta e quase sempre escura que leva à pesquisa, essa trilha que poucos entendem e que tantos evitam. Talvez a ideia de pesquisar tenha nascido em você antes mesmo que você percebesse.
A pesquisa começa com um susto. É o espanto de perceber uma fresta no mundo e decidir atravessá-la. É a recusa diante do óbvio. É a lucidez num tempo em que tudo parece conspirar para a imobilidade. É, em muitos sentidos, uma forma de insubordinação. Num mundo que pede pressa, ela exige demora. Num mundo que exige produtividade, ela convoca pausa. Num mundo que quer certezas, ela oferece mais perguntas.
Hoje, a universidade, que deveria ser abrigo do pensamento e campo fértil para a imaginação, está sufocada por engrenagens que a querem dócil. A lógica neoliberal a corrói. Cada gesto, cada texto, cada hora precisa ter um preço, um impacto, uma metrificação. Não há tempo para o silêncio, para o erro, para o devaneio. O espaço do pensar se estreita, e a infância do espírito é sacrificada.
E, no entanto, é justamente essa infância que sustenta o ofício do pesquisador. Porque pesquisar é voltar a ser criança, não pela ingenuidade, mas pela potência da curiosidade que insiste. É perguntar incessantemente por quê, mesmo quando o mundo parece não querer responder.
É preciso dizer, porém, que a travessia não é igual para todos. Há quem nasça cercado de livros, idiomas, viagens, contatos, sobrenomes que abrem portas por si só. E há quem venha de onde quase ninguém vem. Quem atravessa escolas improvisadas, cidades pequenas, trajetórias marcadas por ausência, por restrição, por penúria.
Quem estuda quando falta luz, quando falta tempo, quando falta tudo, menos a teimosia. Quem aprendeu a se virar antes de aprender a citar. Quem não herdou bibliotecas, mas herdou dureza. Quem não recebeu caminhos, mas precisou inventá-los.
O mundo acadêmico não é neutro. Ele é atravessado por privilégios, redes invisíveis de favorecimento, elitismos velados. Há quem entre com os pés lavados e há quem precise abrir cada porta com o ombro, com o dente, com a coragem. E é impossível falar de pesquisa sem reconhecer que muitos de nós viemos de trajetórias improváveis, de vidas que não preparavam para a universidade, mas que, justamente por isso, tornaram o fascínio pelo saber ainda mais urgente. Há pesquisadores que nasceram da necessidade de compreender o mundo para sobreviver a ele. Há pesquisas que nascem como forma de respirar.
E talvez seja por isso que vale tanto a pena. Porque resistir, vindo de onde viemos, é já transformar. Porque chegar até aqui, apesar das dificuldades, é um gesto de insubordinação contra o destino que tentaram nos impor. Fazer pesquisa, hoje, é um ato de rebeldia contra o cinismo e a mentira. É dizer ao mundo que não aceitamos sua aparência como verdade. É afirmar que, mesmo entre ruínas, ainda há quem escolha conhecer. Ainda há quem escolha pensar. Ainda há quem escolha não desistir.
E então você vai descobrir outras coisas. Vai perceber que há resistência pulsando nos cantos onde menos se espera. Há gente que pesquisa porque ama, porque precisa, porque acredita que pensar ainda é um ato de esperança. Vai encontrar textos que te arrepiam, leituras que te salvam, pessoas que te escutam, perguntas que iluminam.
Vai descobrir que a pesquisa é menos sobre encontrar respostas e mais sobre abrir fendas. Vai entender que o conhecimento verdadeiro não é arrogância, mas humildade diante do real. E que o saber mais bonito é aquele que não se dobra ao poder, mas se curva diante da vida.
Se você sente que precisa pesquisar, então vá. Não porque será fácil, mas porque será verdadeiro. O mundo precisa de quem pense com radicalidade, com afeto, com compromisso. O mundo precisa de quem transforme a dor em pergunta e a pergunta em caminho.
Pergunte. Estude. Desconfie. Insista. E cuide da sua pergunta como quem cuida de uma semente, porque talvez seja ela que abrirá espaço para o mundo novo que ainda não nasceu. Cultive perguntas onde antes só plantaram silêncio. Permita que sua curiosidade fure o asfalto duro do cotidiano, quebre o chão aparentemente sólido das certezas prontas e abra pequenas brechas por onde o ar da imaginação possa entrar.
E siga. Siga mesmo quando parecer tarde demais, cedo demais, difícil demais. Siga quando disserem que não vale a pena, que é inútil, que é perda de tempo. Siga quando ninguém estiver olhando, quando o cansaço pesar, quando a solidão bater à porta em noites longas demais. Siga porque pensar é, em si, uma forma de esperança.
O pensamento sempre recompensa quem ousa caminhar com ele. Ele não oferece atalhos, mas oferece horizonte. Não promete conforto, mas promete lucidez. Não dá garantias, mas dá sentido. E quando você menos esperar, perceberá que cada pequena pergunta que você guardou com cuidado germinou em algo maior que você: germinou em coragem, em crítica, em consciência, em transformação.
O mundo de hoje é cheio de ruídos que tentam calar. A pesquisa é uma das poucas formas de manter a escuta viva. E a escuta, quando insistente, quando cuidadosa, quando radical, se transforma em gesto político. Pesquisar é manter acesa uma chama pequena em meio ao vendaval. É proteger o que ainda resiste. É anunciar que, apesar dos escombros, ainda há futuro.
Então continue. Caminhe com seu pensamento como quem caminha com um velho amigo: às vezes em silêncio, às vezes em desassossego, às vezes em alegria. E lembre-se de que perguntar é um modo de amar o mundo. Amar o mundo o suficiente para não aceitá-lo como está. Amar o mundo o suficiente para querer transformá-lo.
E quando tudo parecer desabar, volte à pergunta que te trouxe até aqui. Ela saberá te levar adiante. Porque é assim que a pesquisa começa, e é assim que a vida se renova: na pergunta que ousa existir onde só havia ruína.
(*) Gabriel Teles, pós-doutorando e professor no Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília. Coordenador do grupo de estudos do Centro de Estudos sobre o Colapso Social (CECS/UnB)
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