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Corpos que resistem à imposição de padrões de beleza

Caroline Roveda Pilger (*) | 12/02/2021 13:00

Quando você pensa na imagem da “musa do Carnaval”, que corpos vêm a sua mente?

Vivemos em um país que é reconhecido internacionalmente pelo Carnaval e pela exposição dos corpos femininos nessa manifestação cultural que é essencial à construção identitária do Brasil. Há décadas, o país exporta uma imagem turística que tem sua base no tripé: Carnaval, diversidade e mulher.

É importante esclarecer que a reflexão proposta aqui tem como pano de fundo o Carnaval – ou carnavais – para pensarmos os lugares que os corpos femininos ocupam na sociedade patriarcal e machista, problematizando principalmente o lugar dos corpos “não padrão”, excluídos dos sistemas de beleza legitimados. Nesse sentido, devemos ter em mente que os corpos femininos são historicamente controlados e punidos em nossa cultura, e uma das maneiras de fazer isso é pela imposição e legitimação de padrões de beleza.

Nossos tempos são permeados por movimentações contraditórias, complexas, mas também complementares. Todo movimento de exclusão e estigmatização gera, felizmente, um movimento de resistência e subversão. Estamos experienciando um momento de extrema legitimação e incentivo de certos padrões de beleza e comportamentos, mas, também, o auge de uma onda de desconstrução desses padrões, quando há a reivindicação e celebração da diferença e da diversidade dos corpos femininos e das maneiras de “ser mulher”.

As mulheres são, desde pequenas, inseridas – e educadas – em uma cultura que incentiva a preocupação excessiva com a aparência e estética. A nossa valorização, ao contrário dos meninos, sempre se deu vinculada, principalmente, ao nosso corpo exterior. Elogia-se a menina, pois ela é uma “princesa bela”, e o menino, quando é esperto, líder, corajoso.

Os últimos anos trouxeram posições de destaque para o Brasil nos rankings mundiais do mundo da beleza. Somos campeões em consumo de cosméticos, de anorexígenos (o país que mais consome essa medicação na América Latina, tendo como principal clientela as mulheres, com 84% da fatia do mercado, segundo estudo realizado pela Nielsen Holding) e na realização de procedimentos e cirurgias plásticas estéticas, que a cada dia se tornam mais banais, traduzindo um universo baseado na pressão estética e na busca incessante por integrar o grupo seleto pertencente ao “padrão de beleza ideal”.

Segundo dados divulgados pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), por meio de pesquisa realizada em 2019 pela Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS), o Brasil ultrapassou os EUA, se tornando o país que mais realiza cirurgias plásticas e procedimentos estéticos no mundo. Foram registradas quase um milhão e meio de cirurgias plásticas de caráter estético e quase um milhão de procedimentos não cirúrgicos. As cirurgias mais procuradas foram o aumento das mamas (silicone) e a lipoaspiração. O país lidera, ainda, o ranking de cirurgias plásticas em adolescentes.

As facilidades para a realização dos procedimentos e a sua hiperdivulgação, atreladas à imposição do “corpo perfeito”, por vezes geram vítimas decorrentes de cirurgias malsucedidas. Como foi o caso recente da influencer Liliane Amorim, 26 anos, que teve complicações após realizar uma lipoaspiração. Seu intestino foi perfurado durante o procedimento, e ela morreu.

O intuito não é demonizar a cirurgia plástica e os procedimentos estéticos, mas ressaltar que se comece a problematizar a sua banalização, o que coloca em risco muitas mulheres. Não há problema em querer mudar, em desejar emagrecer; o perigo está quando toda uma indústria lucra com a insatisfação permanente das mulheres.

Outra questão importante é a cultura das celebridades, estas que têm lugar especial no “Carnaval das musas”. Nesse cenário, podemos incluir as blogueiras fitness e outras influencers, que fazem parte dos corpos que são oferecidos, naturalizando e incentivando a busca incansável pela “perfeição”, essa que sequer existe. Muitas dessas imagens, editadas por meio de softwares e esculpidas pelas cirurgias, vendem a ideia de que qualquer mulher pode ter aquele corpo (se houver esforço bastante). Esse corpo, porém, é irreal e inalcançável até para as celebridades. São os chamados corpos-mídia, como ressalta a professora e pesquisadora Tânia Hoff. Corpos que são criados midiaticamente e só fazem sentido quando inseridos nesse cenário. São corpos inatingíveis, quase não humanos, pois não são reais, são imagens. Eles não têm marcas, rugas nem gordura; estão, assim, distantes dos estereótipos negativos.

Esses resultados são consequência de uma sociedade estruturalmente gordofóbica e que tem como marca cultural a pressão estética que se naturaliza principalmente com as representações e invisibilizações na mídia. Quando afirmo que vivemos em uma sociedade estruturalmente gordofóbica, quero dizer que toda a nossa organização social foi historicamente pensada para pessoas não gordas.

É profícuo ressaltar o significado de gordofobia e sua diferenciação da pressão estética. A pressão estética atinge todas as mulheres, sejam elas gordas, magras, altas, baixas, musculosas, etc. Ela vem sorrateiramente como forma de controlar e punir quem engorda, quem não combate suas estrias ou celulites, quem envelhece, quem não tem determinado cabelo, pele, peito, bunda, por exemplo. A pressão estética faz parte do cotidiano das mulheres, do que se espera delas, e se traduz nas representações legitimadas nas revistas femininas, nas novelas, nos filmes, nas séries, nas propagandas, etc. Porém, é preciso legitimar o lugar de fala de quem sofre gordofobia.

Para além da pressão estética e do que tange à aparência do corpo, a gordofobia é o preconceito, a estigmatização e a aversão às pessoas gordas que tem como base uma opressão estrutural da sociedade. Ela se manifesta em preconceito e exclusão na etapa escolar – bullying –, comentários ofensivos, opressão estética por conta de um padrão de beleza hegemônico que exclui e em discursos médicos que reduzem e estigmatizam por conta do peso.

Também atua por meio da invisibilização na mídia e nos demais espaços culturais e da dificuldade de esses corpos usufruírem seus direitos, como o acesso a determinados lugares públicos que não possuem espaço suficiente – como cadeiras mais largas para sentar, catracas em que não passam, macas de hospitais que não suportam seu peso e aparelhos de exames nos quais não cabem. Ou seja, é a luta por acessibilidade, emprego, saúde, dignidade, respeito.

Apesar de o termo gordofobia ser recente, os estudos acadêmicos sobre o corpo gordo e sua relação com a sociedade têm pelo menos cinco décadas de tradição dentro dos estudos pioneiros americanos, denominados fat studies.

Na contramão desse processo, como forma de desconstrução de padrões, há o surgimento de grupos de mulheres que lutam pelo direito de visibilidade de seus corpos. Nesse sentido, houve transformações positivas, com a visibilidade, o crescimento e a disseminação dos feminismos e suas pluralidades, que ganharam reconfigurações oriundas da explosão de uma “quarta onda” do movimento, conforme apontam autoras feministas como a professora Heloísa Buarque de Hollanda.

A luta é pela representatividade da diversidade feminina, focada, principalmente, em reivindicações que têm o corpo como bandeira e plataforma de comunicação.

As reivindicações plurais do campo da estética são relevantes, pois direcionam luz aos corpos femininos em suas variadas formas, tamanhos e cores, oferecendo lugar especial a um grupo de mulheres que até então não se via na mídia. A efervescência dos grupos em prol do autoamor culminou em movimentos nas redes sociais e na ascensão de blogueiras gordas, por exemplo. É importante ressaltar que a criação e ascensão do mercado de moda para as mulheres gordas – o plus size –, em âmbito global, é estimulado por essa valorização da diversidade que se insere na esfera da cultura do consumo e que percebe nesse público específico mais uma potencial forma de lucrar.

Essa democracia de corpos também pode ser vista na época de Carnaval. Nesse sentido, o Carnaval pode ser pensado a partir das perspectivas dicotômicas que trago aqui. Ou seja: o “Carnaval da resistência” coexiste com o “Carnaval dos padrões”.

Por um lado, temos as celebrações do Carnaval de rua – o “da resistência” –, que dão espaço para a ocupação dos corpos marginalizados e excluídos dos circuitos idealizadores de beleza. Aquelas mulheres que estão, recorrentemente, invisibilizadas pelos artefatos culturais midiáticos representam a beleza da “clandestinidade”, dos corpos reais, com marcas e texturas, livres da assepsia da imagem feita em Photoshop. Essa explosão de corpos diversos, principalmente nas redes sociais, e os movimentos de mulheres que marcam as ruas pelo direito ao corpo, pela não hipersexualização de seus corpos e pelo direito de sair sem ser assediada e violentada, também estão presentes na ressignificação das celebrações de Carnaval atualmente.

Estar na rua e ocupá-la com os corpos “não padrão” é também lutar por essa visibilidade e reconhecimento social, é legitimar uma existência e resistência que quer, e necessita, direitos, tendo o Carnaval se tornado, também, momento propício de reivindicações.

De outro lado, e paralelamente, observamos, ano após ano, a legitimação do “Carnaval dos padrões” ou do “Carnaval das musas” – essas que mencionei no início do texto e que fez com que algumas imagens se materializassem na sua mente. Esse Carnaval legitimado pela grande mídia é o dos desfiles das escolas de samba, das celebridades na avenida, das rainhas de bateria com corpos esculpidos durante meses e meses em academias de ginástica, procedimentos estéticos e dietas restritivas. É o Carnaval da naturalização e legitimação dos padrões reducionistas, da hipersexualização, da opressão mascarada pela exaltação de uma “beleza” hegemônica.

Você já tinha parado alguma vez para pensar em quais corpos são celebrados nesse Carnaval? Quais corpos têm direito de ocupar os espaços de destaque, tanto midiáticos quanto na avenida? Será mesmo que todas as mulheres têm o direito de se expor? De expor seus corpos sem constrangimentos?

É preciso lembrar que as “musas do Carnaval” também sofrem com a pressão estética. Afinal, todas as mulheres sofrem. Ou seja, para participar do Carnaval, as mulheres começam a sua preparação muito tempo antes, é algo que se alonga pelo ano inteiro. Não há folga, não há espaço para o fracasso, muito menos para engordar. O Carnaval da mídia que espetaculariza, celebra e hipersexualiza seus corpos não irá aceitar menos do que a “perfeição”.

Naomi Wolf, em O Mito da Beleza, alerta para o fato de que mesmo após as conquistas sociais, culturais, econômicas e políticas das mulheres por conta do feminismo, ainda existe a falta de liberdade, ou a sua restrição, por conta da relação tóxica e imperativa das mulheres com o “mundo da beleza”. A autora classifica a “beleza” como uma das ficções sociais sem fundamento, mascaradas como “naturalmente” pertencentes ao que seria um “universo feminino”. Dessa forma, as imagens de beleza são usadas perversamente contra as mulheres. São uma arma política utilizada como reação ao feminismo, bem como uma maneira de coerção social encontrada para frear a revolução das mulheres e controlar seus corpos e ações.

A perversidade do combo “capitalismo + mídia + indústria da beleza” é gigantesca. É uma engrenagem sofisticada. Portanto, quando falamos em assegurar a inserção nos padrões de beleza vigentes e conquistar a aceitação social, também estamos tratando de conquistas atravessadas por questões de classe e raça: nem todas as mulheres conseguem pagar pelos procedimentos, têm tempo para a academia ou não se veem excluídas da vitrine das produções midiáticas baseadas no racismo.

O Carnaval é apenas uma das temáticas que legitimam a busca do “corpo perfeito”, oferecendo subsídio para o crescimento da indústria da beleza. A busca da “beleza” não tem linha de chegada, pois se baseia em um ciclo de insatisfação perpétua. O mercado da estética cresce e se nutre conforme também crescem as inseguranças.

O “Carnaval dos padrões” nos faz lembrar de tudo isso. Prova o quão opressora pode ser a cultura da beleza, baseada na pressão estética e gordofobia. Mas o “Carnaval da resistência” está aí para mostrar que somos diversas e que temos o direito de existir, de ocupar os espaços. De resistir. Complexo, não é mesmo?


(*) Caroline Roveda Pilger é ativista, jornalista, mestra em Processos e Manifestações Culturais e doutoranda em Comunicação na UFRGS.

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