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Democracia é mais e mais direitos

Bruno Lara (*) | 25/08/2021 08:30

Vez ou outra, eu ouço críticas à Constituição Federal de 1988, no sentido de ela ter “muitos direitos”. Cada vez que alguém fala isso, penso que são Ulysses Guimarães deve se revirar onde estiver. Considero a nossa atual Carta muito boa. São esses direitos que dão ao documento o apelido de Carta Cidadã, embora tenha sido bastante mexida desde então. Houve alguns importantes avanços em benefício do povo, mas também houve retrocessos que limitam a democracia e a cidadania.

Se retomarmos o filósofo francês Claude Lefort, vamos perceber que a criação de direito é um conceito central e fundante da sociedade democrática. Sem a constante criação de direitos, aperfeiçoando o sistema, não há democracia. Simples assim. A democracia real é, necessariamente, popular. Não é aristocrática, meritocrática e nem tecnicista.

Nesse sentido, não há, de maneira alguma, que se falar em “direitos demais na Constituição”. Um direito escrito não é garantia do usufruto desse direito. Apenas abre caminho para as lutas em busca da efetivação dos direitos registrados na Carta e nas leis. Quando alguém fala sobre “direitos demais”, que “o trabalhador está custando muito caro”, que “é melhor para a economia acabar com o 13º salário”, que (antigamente) a escravidão pode prejudicar a economia, significa que esses emissores querem vender a ideia de que a sociedade e o Estado não têm como dar conta de vida digna a todos. É mais ou menos aquele clichê do cobertor curto do orçamento do Estado brasileiro (ai, que preguiça!), cujo Produto Interno Bruto (PIB) é quase 7,5 trilhões de reais – e muitas vezes a gente fica mendigando R$ 1 bi pra lá e R$ 1bi pra cá.

A nossa Constituição garante, por exemplo, que o salário-mínimo deve dar conta da alimentação, transporte, lazer, escola, saúde, moradia, higiene etc. Dada a história e o contexto brasileiros, é uma piada. Se a gente tiver um Estado neoliberal, que transfere aos cidadãos responsabilidades que seriam de políticas públicas, o potencial de consumo do salário, claro, é drasticamente reduzido. O valor do plano de saúde, por exemplo, é uma ofensa, uma afronta, um deboche e uma crueldade.

Foucault chamou de “empresário de si” essa ideia sobre o indivíduo contar menos com o Estado e muito mais com a sua própria força. É a pessoa entendida como “capital humano”, a economia no DNA do indivíduo. Houve uma radicalização e distorção da noção liberal de indivíduo, desumanizando a pessoa, tentando desconectá-la da coletividade o quanto possível, além de desvalorizar a importância do Estado, de políticas públicas e da solidariedade.

Após quatro décadas sob um Estado fortemente neoliberal, o povo chileno não aguentou: exigiu uma nova Constituição, que agora deve ser elaborada por forças sociais, mais plurais, solidárias e inclusivas. A vida sacrificada e dura é um projeto político, que para ter sucesso depende de base social. Para isso, é preciso uma estratégia muito eficiente de comunicação, de forma a convencer a população de que medidas prejudiciais a si mesma devem ser adotadas em favor do bem comum (o tal do “remédio amargo”). Daí a importância da democracia, também, na imprensa e na comunicação.

Suponhamos que não houvesse “tantos direitos” na Constituição de 1988. Antes de lutarmos por direitos, teríamos que gastar décadas ou mesmo séculos de tempo e energia (ou seja, vida) para, primeiro, inserir conceitos e previsões sociais em documentos. Seria um imenso atraso nas lutas sociais. Pensa o quanto de luta não foi feita até a efetivação da bendita Carta de 88 e da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A própria luta por direitos é um direito da democracia ao qual jamais podemos renunciar. Lefort nos conta que o regime democrático é o único da história que legitima o conflito. O conflito é uma construção coletiva que, necessariamente, integra a democracia, não é uma anormalidade que deve ser extinta por ameaçar a ordem. Muitas vezes, em debates políticos rasos, há comentários de que “a sociedade está dividida”. É óbvio, sempre estará, desde que seja democrática. No totalitarismo, seja ele de qual fundamento ideológico for, aí sim, não há divisão. Estado, partido, dirigente e sociedade se confundem, são “harmoniosos”, uníssonos, são um corpo só.

Quando alguém disser que o Estado não tem condições de permitir a você aposentaria ou saúde pública respeitosas, por exemplo, possivelmente é a manifestação do exercício de limitar o desenvolvimento da democracia e da vida plena e em abundância. Lembremos que direitos não caem do céu enrolados com fitas vermelhas e embrulhados pra presente.

(*) Bruno Lara é jornalista da UnBTV, pesquisador de pós-doutorado em Ciência da Informação pela UnB e editor do blog Dissertação Sobre Divulgação Científica.

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