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Desafios universitários pós-covid

Demetrio Luis Guadagnin (*) | 09/10/2021 15:25

Estes são tempos turbulentos. Crescem nacionalmente debates e críticas sobre o que deveria ser a universidade no presente e no futuro, intensificados pela pandemia e pelo avanço neoliberal. No ambiente acadêmico, parte-se da premissa de que na conjuntura nacional estão as forças motrizes com as quais a universidade precisa lidar. Outra premissa é de que se tratam fundamentalmente de problemas de financiamento, indevida ingerência na autonomia universitária e perseguições ideológicas. É fato. Existe, entretanto, um debate internacional muito similar ao que ocorre aqui, sugerindo tratar-se de um fenômeno global com mais alguns ingredientes. Neste artigo procuro resumir alguns dos elementos dessa reflexão global sobre a complexidade escondida por trás dos crescentes desafios e críticas à universidade.

Quatro questões parecem resumir o quadro global: para que e para quem serve a universidade?; como equacionar e relacionar educação, pesquisa e extensão?; qual o papel do Estado no financiamento da universidade?; e como equacionar a liberdade acadêmica com a prestação de contas e os compromissos com os mantenedores e alunos?.

Parte dessas críticas resulta das contradições próprias dos valores basilares da universidade: a liberdade de cátedra e a autonomia acadêmica. Se, por um lado, há o risco da falta de transparência, de prestação de contas, de compromisso com valores formalmente estabelecidos e explícitos, e de unidade interna de condução, por outro, sua perda significa menos liberdade de ensino e pesquisa, seja por demandas sociais, se financiada publicamente, seja por interesses privados, se assim financiada.

Parte das críticas resulta do próprio sucesso da universidade – a expansão exponencial das universidades em acesso e produção acadêmica desde a segunda metade do século XX. Combinada com a contração dos recursos públicos em geral, exacerbada agora pelos custos com saúde, cria-se uma situação de desequilíbrio que realimenta as críticas e reflexões.

As universidades não estão mais na tranquila torre de marfim que lhes permitia decidir o que ser de forma independente e livre.

Como acomodar ao mesmo tempo as demandas contraditórias de empreendedorismo, produção de reflexão e conhecimento universal, resolução de problemas concretos, democratização de acesso, formação de talentos, formação de uma sociedade educada, autonomia acadêmica e financiamento seguro? Os novos e grandes desafios globais, entre eles os ambientais e de saúde, criam para as universidades, ao mesmo tempo, novas responsabilidades, novas oportunidades e mais gargalos.

As instituições universitárias têm sido bastante passivas em relação às tendências macrossociais e a este quadro de demandas, basicamente reclamando mais investimentos públicos ou pressionando seus profissionais por financiamento externo. Em ambos os casos, a liberdade acadêmica está em jogo, independentemente de como ela seja concebida e materializada. Em ambos os casos, a competição por recursos escassos com outros campos sociais inviabiliza as poucas alternativas tradicionais de financiamento.

Ao sabor de macroprocessos sociais talvez rápidos demais para permitir mudanças adaptativas consistentes, as universidades se reconfiguram de forma desorganizada. É visível a imensa heterogeneidade de reposicionamentos que se reflete em uma diversidade de perfis e valores institucionais que desafiam os próprios conceitos de universidade e de educação superior.

Essa fragmentação nebulosa e o aumento de assimetrias são visíveis também dentro das grandes instituições, entre as áreas mais fortemente conectadas com pesquisas e serviços para o mercado, mais valorizadas economicamente, e as áreas mais voltadas para a reflexão pura e conexão com a sociedade, menos valorizadas economicamente. Finalmente, a problemática aqui descrita é construída e vivida de forma muito heterogênea também entre os acadêmicos, conforme sua posição hierárquica, seu campo acadêmico, seu viés de trabalho, seus valores pessoais e sua instituição de lotação, em um cenário de crescente distanciamento. Ao mesmo tempo, outras instituições e empresas disputam o papel da universidade no ensino, pesquisa, desenvolvimento e enfrentamento de problemas complexos.

Por um lado, da diversidade de reflexões, críticas e reposicionamentos podem emergir as novidades. O passado, entretanto, sugere que os sucessos das universidades foram mais explicados pela prosperidade econômica regional que por modelos específicos de estrutura ou concepção.

Neste momento, apesar dos circunstanciais holofotes dirigidos à ciência em função da pandemia, a universidade vem progressivamente perdendo protagonismo e imagem. Esse quadro de desafios é global, não exclusivamente brasileiro, embora contextos peculiares induzam a alguma heterogeneidade.

A sociedade está simplesmente exigindo visibilidade e compromisso. O alunado procura instituições capazes de atender a pelo menos uma de duas demandas principais: colocar-se no mercado e ser capaz de exercer influência em processos sociais de interesse. As classes médias, ao longo da história da universidade, têm sido favorecidas quando o acesso foi ampliado para além das elites. Surge delas, desse alunado, desde há pelo menos uma década, em diferentes países, uma parte importante das críticas vividas na forma de movimentos dentro e fora da institucionalidade.

A universidade precisa se transformar para se adaptar e sobreviver. É hora de mostrar o valor adaptativo da sua expertise acumulada.

(*) Demetrio Luis Guadagnin é professor do departamento de Ecologia da UFRGS.

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