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Educar para o futuro

Por Maria Arminda do Nascimento Arruda (*) | 04/06/2019 09:39

As políticas públicas para a área da educação no Brasil têm enveredado por estranhos caminhos, que apontam para vias que podem nos levar a becos sem saída: desestabilização de projetos exitosos há décadas e a incompreensão sobre a importância do setor educacional na sociedade. As medidas são concebidas sob a justificativa de corrigir desvios, em nome de desígnios superiormente esclarecidos, sem que se saiba, de fato, para que direção apontam.

Exemplos pululam e assombram o ambiente educacional brasileiro, como o das propostas da chamada escola sem partido, do ataque ao que se denomina equivocadamente por marxismo cultural, da Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as Universidades Públicas do Estado de São Paulo, em curso na Assembleia Legislativa, do erro em supor que as Humanidades sejam desnecessárias e pouco úteis à formação dos estudantes e, finalmente, no debate sobre os gastos excessivos do ensino, especialmente do nível superior, cujo dispêndio reverte em prejuízo aos investimentos no ciclo básico.

Paradoxalmente, tudo se passa em nome do projeto de educar as futuras gerações, que teriam sido lesadas pelas decisões dos agentes responsáveis pela Educação, sejam provenientes dos gestores do Ministério da Educação, sejam originadas de escolhas dos dirigentes das instituições de ensino. Os projetos de racionalização dos recursos, com o objetivo de aplicá-los de modo mais coerente e justo no trato das urgências do setor, espelham concepções puramente econômicas do debate, por vezes totalmente aderentes à dinâmica dos mercados.

Isso é feito em franca desconsideração das fragilidades da educação, que se desdobram em problemas que comprometem o destino da juventude e abarcam o crescente desemprego, a marginalização social, a violência, o assassinato de centenas de jovens na periferia das grandes cidades, apenas para enumerar os mais visíveis. Nesse cenário de profundas desigualdades, a problemática educacional transcende as soluções economicistas e de gestão.

A dimensão econômica do debate – cada vez mais alardeada e envolta na discutível aura de neutralidade que lhe confere o saber especializado – tende a submeter a questão da educação, especialmente das universidades públicas, a critérios puramente financeiros. Em artigo recente, publicado no jornal Folha de S. Paulo, o economista Sérgio Almeida, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, trata dos recursos destinados às universidades públicas no País segundo uma perspectiva altamente econômica.(1)

Partindo da constatação da precariedade do ensino básico no Brasil, o autor argumenta que no âmbito do “ecossistema educacional do país, em que abundam desertos de mediocridade, as universidades públicas, portanto, parecem oásis. A imagem é ilusória”. Em seguida se indaga: “O que fazer, então, para melhorar a qualidade do ensino básico e superior?”. Formulada a pergunta, passa a tecer considerações sobre as manifestações em prol das verbas para a educação, ocorridas no dia 15 de maio em mais de 170 cidades brasileiras e que reuniram mais de um milhão de pessoas. A seu juízo, embora sejam “um reclame legítimo, fazem ouvidos moucos para dois conjuntos de questões que fornecem algumas explicações para a baixa qualidade da educação no país”.

Sem refletir mais detidamente sobre o diagnóstico construído para o ensino público superior, cuja pretensa qualidade derivaria, segundo o articulista, da mediocridade reinante – opinião que se situa na contramão das estatísticas que mostram o crescimento da produção científica brasileira nas últimas décadas -, vale a pena acompanhar o conjunto das questões referidas(2): “Primeiro, os cortes são um sacrifício em favor do futuro… Segundo ponto: para um país com a renda per capita do Brasil já gastamos bastante com educação.

O setor consome 6% do PIB, acima da média (5,5%) da OCDE… O terceiro ponto: antes de pleitear mais dinheiro precisamos aumentar a qualidade fazendo melhor uso dos recursos disponíveis”. O segundo conjunto de questões arroladas se diferencia do anterior, dado a sua condição de mescla de diagnóstico e proposição, atribuindo à “estrutura de incentivos prevalecente” a responsabilidade geral das “principais ineficiências e distorções”: “O sistema salarial de escolas e universidades públicas estimula a mediocridade… Os efeitos perversos de uma estrutura salarial isonômica – em que, por exemplo, professores de medicina ganham o mesmo que os de economia -, a despeito da performance, acabam por afastar os pesquisadores mais produtivos, que buscam colocações na iniciativa privada… Um segundo aspecto negativo é a falta de accountability de gestores e de governança externa.

Ao distribuir recursos para escolas e universidades, o Estado não leva em conta os resultados apresentados…. Um outro ponto é o financiamento das instituições de ensino superior. Nossas universidades públicas dependem completamente das transferências do contribuinte para pagar despesas… As possibilidades de fontes adicionais de receita são inúmeras: leilões de espaços do campus para empresas interessadas na provisão de serviços para a comunidade, venda de serviços de consultoria e assessoria para empresas públicas e privadas, venda de cursos de curta duração e palestras para aperfeiçoamento profissional, campanhas de arrecadação de doação entre ex-alunos e empresas… Nesse redesenho do financiamento deve-se discutir a introdução de cobrança de mensalidades”. Como se percebe, o sentido subjacente às propostas para a educação e o ensino superior reside numa mudança nas formas de financiamento e gestão das instituições, de forma a ajustá-las à dinâmica dos mercados, sem que se indague sobre o significado mais amplo e abrangente da formação das novas gerações.

"A dimensão econômica do debate – cada vez mais alardeada e envolta na discutível aura de neutralidade que lhe confere o saber especializado – tende a submeter a questão da educação, especialmente das universidades públicas, a critérios puramente financeiros"

Se tomarmos esses dois conjuntos de argumentos, vê-se que o corte de gastos do Ministério da Educação tem sido uma prática inaugurada pelos governos desde 2015, como demonstram os orçamentos realizados. “Os recursos globais da pasta tiveram aumento médio de 10% de 2006 a 2014, durante os governos de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff… Com a crise econômica, que fez o PIB … do país derreter 7% em 2015 e 2016, o orçamento do ministério registrou retração acumulada de 6% de 2015 a 2018, em valores corrigidos pela inflação”(3).

Desse modo, na mesma edição do jornal, outra matéria jornalística demonstra que o volume de recursos destinados à educação acompanhou as dificuldades orçamentárias do país, revelando que o setor aceitou a compressão financeira imposta. No mesmo artigo, segundo os dados apresentados, o percentual dos gastos por alunos do nível médio no país, tendo como referência a participação sobre o PIB per capita, está abaixo da OCDE, respectivamente, 23% e 25% e da Coreia do Sul, país que despende esforços ponderáveis no campo da educação, participando com 31%.

Como se sabe, as mudanças educacionais da Coreia do Sul construíram as bases das transformações e da modernização do país, revelando que os investimentos educacionais projetaram o presente, que foi a condição da qualidade profissional e do impulso à inovação. Nesse cenário, o Estado sul-coreano dirigiu investimentos vultosos para a educação com o término da guerra, apesar das múltiplas necessidades originadas do conflito que devastou o seu território.

Em larga medida, não há como falar em qualidade do ensino na ausência de recursos para a construção de laboratórios, aquisição de equipamentos, existência de bibliotecas, sobretudo em face da expansão das novas tecnologias informacionais. Os incentivos e investimentos não são excessivos, são parte integrante das mudanças – salários defasados e até aviltantes são maus conselheiros para o desempenho qualificado do corpo docente. Especialmente nas universidades, é atitude iníqua determinar qualidade de performances, ou importância relativa dos diversos campos do conhecimento, consoante as afirmações do ministro da Educação que afirmou o caráter dispensável das Humanidades.

Quais são os critérios seguros para determinar a relevância das especialidades? A questão de fundo é, pois, de outra ordem: é tributária das escolhas realizadas que estão longe da pretensa neutralidade, ou da busca por eficiência e aperfeiçoamento da chamada governança, por mais que elas sejam desejáveis e podem aperfeiçoar a accountability.

O governo atual, ao invés de propor medidas que planificassem a utilização do orçamento das instituições de ensino, tornando-as mais eficientes, optou por contingenciar aquelas universidades que, na visão do ministro, promovem “balbúrdia” e, quando foi instado a contornar a polêmica gerada pela declaração controvertida, realizou corte horizontal dos recursos, sem um estudo mais detido e planejado. De fato, tendo em vista a compressão orçamentária ao longo dos últimos anos, o contingenciamento é proporcionalmente maior, pois incide sobre um volume menor, levando a que o bloqueio nas universidades federais atinja 30% das denominadas despesas discricionárias(4).

As políticas para a educação no país teimam, portanto, em desconhecer a relação entre uma formação deficiente e desaparelhada e a nossa gritante e corrosiva realidade, cujo equacionamento exige medidas urgentes e o concurso de vários agentes realmente comprometidos com a educação. Soluções ad hoc e exclusivamente econômicas serão circunstanciais, até porque se sabe que a cobrança de mensalidades não resolve problemas de financiamento, assim como “exigir no futuro, quando empregados e com renda adequada (5)” que os estudantes pobres possam ressarcir a sociedade dos custos da sua educação, é ideia envolta em incertezas, pois não há dúvida de que é quase impossível construir projeções em uma “sociedade líquida”, para acompanhar a formulação do sociólogo polonês Zigmunt Bauman. A problemática do ensino, em especial das universidades públicas, é de outra ordem: refere-se ao papel inclusivo que elas cumprem no Brasil.

Segundo os dados da Andifes, nas universidades federais mais de 70% dos estudantes provêm de famílias que contam com um e meio salário mínimo per capita; o contingente da chamada população composta de pretos, pardos e indígenas – PPI – ultrapassou 50%. A pergunta sobre o que fazer deve comportar o reconhecimento desse contexto complexo e estridente. As informações da Associação dos Reitores corroboram o fato de o ensino superior público vir respondendo aos desafios da sociedade brasileira e cumprindo o seu papel de absorver e formar estudantes oriundos das camadas populares, democratizando o acesso.

O corte dos recursos nessas instituições terá impacto nas políticas de acolhimento dessa parcela de jovens, cujos pais não frequentaram universidades, pois, na sua maioria, os alunos atualmente matriculados foram os primeiros das suas famílias. Senão por mais nada, não se apoia um setor em detrimento de outro que, reconhecidamente, tem cumprido a missão de ampliar as oportunidades de ingresso, em especial no âmbito das disciplinas humanísticas e artísticas.

Quando, já na década de 1980, o educador Darcy Ribeiro afirmou que “se os governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios”, ele chamava atenção para a ingente escolha civilizatória da educação. A expansão das organizações prisionais nos últimos anos comprova o quanto essas palavras eram premonitórias e indicativas da imprescindibilidade de formação educacional, único caminho para contornar as desigualdades existentes e preparar a juventude para viver e atuar nas sociedades contemporâneas, submetidas ao ritmo vertiginoso de mudança. A intenção do Ministério da Educação de descentralizar os investimentos nas Humanidades, especificamente nos cursos de Filosofia e Sociologia, ignora a natureza dessas disciplinas e descura as implicações da medida.

A concepção de que as Humanidades e as disciplinas da cultura são apenas ilustrações dispensáveis é avessa às exigências das sociedades do futuro, da inovação, da inteligência artificial. Estas requerem profissionais flexíveis e ágeis, capazes de rever constantemente decisões, aptos a encontrar soluções criativas, no contexto de uma sociedade na qual o futuro é uma incógnita, sugerindo inexistir projeções seguras sobre as profissões mais ajustadas à realidade que se anuncia.

Para isso, será necessário um novo conhecimento científico, de formato interdisciplinar, cuja apropriação social e ligação com a prática não sejam externas à própria operação de conhecimento, atributos inerentes às Humanidades. A vocação fundamental das Ciências Humanas reside no compromisso com a reflexão pública, cidadã, destinada ao coletivo e ao bem comum, princípios que embasam as sociedades democráticas. Confunde-se, por isso, com as demandas educacionais do novo tempo.

(*) Maria Arminda do Nascimento Arruda é professora titular de Sociologia e diretora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

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