Licença-paternidade é questão cultural, não fiscal
A ampliação da licença-paternidade, em tramitação no Congresso —dos atuais 5 dias para até 20—, representa um avanço na divisão dos cuidados com os filhos. Quando o afastamento é direcionado (quase) exclusivamente às mulheres, reforça-se, ainda que implicitamente, a mensagem de que o cuidado infantil é responsabilidade delas. Aproximar o tempo de licença entre pais e mães reconfigura esse sinal.
Afinal, cuidar de um recém-nascido não é só executar tarefas: é decidir como a família distribui responsabilidades, vínculos e futuros —e isso cabe tanto à mãe quanto ao pai.
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Os benefícios são amplos, tanto para as crianças quanto para as mulheres. As diferenças salariais entre os gêneros começam a aparecer justamente após o nascimento do primeiro filho, quando muitas mães interrompem carreiras ou migram para funções mais flexíveis —frequentemente de remuneração mais baixa. Fica evidente que as desigualdades no ambiente doméstico e no mercado de trabalho são dois lados de uma mesma moeda.
Nesse contexto, chama a atenção que o principal embate em torno da licença-paternidade seja o seu custo fiscal, estimado em R$ 3,3 bilhões quando a licença sobe para 10 dias, chegando a R$ 5,4 bilhões quando alcança 20 dias. Foi esse cálculo que reduziu a proposta original de 30 para 20 dias de afastamento.
A contradição é que seu alto custo evidencia justamente um desequilíbrio que a medida tenta corrigir. No Brasil, homens ganham mais que mulheres —cerca de 25% a mais— e têm maior participação no mercado de trabalho: 73% ante 53%. Com tanto sobre a mesa, uma licença não remunerada ou facultativa poderia ter baixa adesão, como aconteceu com diversos países que implementaram a licença-paternidade dessa forma. Financiar o benefício pela Previdência —tornando-o obrigatório, como já ocorre para as mulheres— é condição necessária para sua efetividade.
Entretanto, a proposta também condiciona a expansão da licença ao cumprimento da meta fiscal de 2027, algo que pode ser difícil de alcançar considerando a evolução esperada dos gastos nos próximos anos.
Por mais que a preocupação com os impactos fiscais da medida sejam meritórios, essa excepcionalidade revela a posição periférica do cuidado paterno na hierarquia das prioridades públicas, já que muitos outros gastos não passam por esse crivo.
A licença-paternidade disputa espaço com programas já consolidados, apesar de seus resultados serem mais efetivos e persistentes.
A presença do pai reduz evasão escolar e melhora resultados educacionais das crianças, ao passo que o aumento da renda das mulheres —alcançado via redução da penalidade salarial da maternidade— reduz a dependência econômica e a incidência da violência doméstica. Ou seja, uma licença-paternidade que melhora o compartilhamento do cuidado com os filhos previne problemas que diversas políticas compensatórias tentam remediar, como é o caso do políticas educacionais como o Pé-de-Meia e o BPC para mulheres vítimas de violência.
Há também escolhas de desenho que poderiam ampliar o impacto sem elevar custos. A experiência internacional indica que licenças sequenciais —quando parte do tempo é exercida pelo pai após o retorno da mãe ao trabalho— permitem mais tempo total de cuidado familiar, a um custo semelhante.
No fim, o que está em jogo não é o custo fiscal da licença-paternidade. A medida tem potencial de transformar práticas familiares e, com o tempo, o próprio mercado de trabalho.
Reduz desigualdades, fortalece vínculos e forma cidadãos mais autônomos, que não dependem de assistências. Representa uma mudança na estrutura da sociedade. O real obstáculo é cultural, e, justamente por isso, mais difícil de enfrentar.
(*) Cecilia Machado, economista-chefe do Banco BoCom BBM e professora do departamento de economia da PUC-Rio, através da Folha de S.Paulo
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