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Mais Médicos e mais afronta ao Estado democrático de Direito

Por Giovanna Trad (*) | 08/08/2013 08:39

Há algum tempo, o governo federal institui planos mirabolantes para angariar a massa mais carente da população. As “bolsas” denotam isto. A última façanha da presidente Dilma foi a edição da medida provisória conhecida como "Mais Médicos", que consiste na importação de médicos formados em instituição de educação superior estrangeiras, para prestação de serviços nas regiões mais carentes do país, mas com um grande agravo: esses profissionais poderão atuar sem que suas capacidades técnica e de proficiência na língua portuguesa sejam plenamente aferidas pelos exames de certificação Revalida e pelo CELPE/BRAS, respectivamente.

O pacote anunciado recentemente ainda tem por “meta” incluir como condição obrigatória ao Curso de Medicina, um ciclo de dois anos de residência (especialização) no Sistema Único de Saúde, com vigência a partir de 2018. Este último anúncio, importante dizer, é fruto de uma alteração da proposta original, que previa um elastério de dois anos na graduação destinado à prestação compulsória de serviços no SUS. Isso se a perturbada administração não transformar novamente este intento. Enfim, este pandemônio gerado pelo estado- que, em um impulso eleitoreiro age desmedidamente, e depois acaba tendo que retrosseguir- é mais uma prova de seu despreparo para gerir os interesses de uma nação.

Os defensores da medida alegam a pertinência da indigitada MP 621/2013, sob o argumento de que há número insuficiente de médicos, o que estaria reverberando contra a saúde da população. Sustentam, ainda, que o trabalho obrigatório na rede pública, garantirá aos futuros médicos uma melhor formação. Assim, sem quaisquer constrangimentos, uma vez mais Dilma tentou ludibriar milhões de brasileiros que ainda tinham esperanças que fossem apresentadas propostas legítimas e embasadas.

Como não poderia ser diferente, este plano incendiou revezes, não apenas entre as entidades médicas, mas no seio das pessoas naturais que, claramente, ainda vislumbram os perigos que estão por vir. O meio jurídico, de um modo geral, tem visto a questão sob os aspectos legal e constitucional, e avisemos de início, que o tal "pacote" afronta a olhos translúcidos os princípios e regras mais fundamentais previstos no Ordenamento Nacional (e tratados internacionais, inclusive, do qual o Brasil é signatário).

Com efeito, podemos afirmar logo de início, que a medida provisória em destaque contem vícios de índole constitucional desde a sua formação, já que violou o disposto no artigo 62 da Constituição federal, que preconiza: "Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional".

Outra irregularidade visível diz respeito à intervenção do estado no livre exercício profissional do cidadão, quando condiciona o trabalho do médico ao cumprimento obrigatório de serviço público por dois anos (SUS) durante o tempo de residência (especialização), o que equivale a um período de escravatura, em que o indivíduo fica cerceado de se autodeterminar profissionalmente.

A inconstitucionalidade da medida provisória calcada na violação do princípio da isonomia também alcança o contingente de profissionais formados no exterior que pretendem atuar no Brasil (mas que não aspiram prestar serviços no programa instituído pelo governo federal), vez que continuarão obrigados a realizar os rigorosos e certeiros exames de certificação de competência e habilidade (técnica e língua portuguesa), o que os coloca em posição de desigualdade com os profissionais formados no exterior que se inscreverem no programa "Mais Médicos", pois estes últimos poderão exercer seu ofício (ainda que em região circunscrita) sem quaisquer burocracias aptas a legalizar e autenticar suas aptidões.

O médico intercambista, por sua vez, também é presa dos desatinos do Governo Federal, pois a sua atividade laboral estará limitada a localidade da qual não poderá se arredar, o que sepultará a sua autonomia e dignidade enquanto ser humano e profissional dotado de ideais e propósitos.

Importante preceito constitucional também desrespeitado é o que estabelece a obrigatoriedade de aprovação em concurso para investidura em cargo ou emprego público (art. 37, II). Os termos postos na MP 621/2013 colidem com o aludido mandamento, já que despreza o concurso público aos profissionais formados no exterior que se afiliarem ao programa. O pior, como já reverberado, é que sequer submeter-se-ão aos testes que certificariam suas qualificações e habilidades.

Temos que o ponto mais agressivo e severamente desumano da medida provisória reside na estratégia de incursionar estes intercambistas de formação duvidosa e temerária para atender à classe mais miserável do país, posto que o plano circunscreve que este atendimento atenderá exclusivamente as regiões mais afastadas e as periferias das metrópoles. Este cerne da questão esgrima com os princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana (previstos nos artigos 1º, inciso III, 5º, caput c/c o inciso III e 196) que tem como fundamento basilar o respeito ao indivíduo, independentemente de sua cor, raça, sexo, nível intelectual ou condição social. É inconcebível, à vista desta Constituição linda, liberatória, humana e irretocável que dispomos, retrocedermos aos tempos da ditadura.

É mordaz oferecer saúde pública de qualidade para aqueles que residem em Bairros e cidades privilegiadas sob o ponto de vista geográfico em detrimento daqueles que vivem em periferias e cidadezinhas estabelecidas nos rincões do país. Por que os moradores do Sertão Nordestino, Pantanal, Santo Amaro do Maranhão, por exemplo, são menos merecedores de receber tratamento de saúde seguro e digno que aqueles que residem nos Bairros Centrais de Fortaleza, Campo Grande e Piauí? É uma disparidade despótica, que não se coaduna com os valores estatuídos na Carta Magna.

Como ressaltado assaz, o ponto mais censurável de todo este engodo é a pesada postura discriminatória em prejuízo da classe carente, que está na iminência de se deparar com uma assistência de saúde arriscada e precária, ao passo que o mais afortunado terá saúde segura e de qualidade. Uma pena. E qualquer semelhança com os rituais eugênicos pode ser mera coincidência. Assim espero.

(*) Giovanna Trad é advogada, pós-graduada em Direito Médico, presidente da Comissão de Biodireito e membro da Comissão de Direito à Saúde (OAB/MS).

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