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MP 881 é retrocesso na luta pelo direito à alimentação saudável das crianças

Por Teresa Liporace* | 15/06/2019 14:36

Hoje, no Brasil, uma em cada três crianças tem excesso de peso. Não é exagero dizer que a obesidade infantil configura uma epidemia. A título de comparação, 4,1% das crianças enfrentam déficit de peso, em razão primordialmente da subnutrição. Ou seja, o excesso de peso já excede em oito vezes a frequência de déficit de peso no cenário da infância no Brasil.

O aumento da prevalência da obesidade está ligado ao consumo cada vez mais frequente e precoce de alimentos não saudáveis. Ultraprocessados altos em açúcar, sódio e gorduras favorecem o ganho excessivo de peso e o aparecimento de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) – como diabetes e hipertensão – nas crianças, comprometendo significativamente seu desenvolvimento e bem-estar. Uma criança obesa tende a permanecer obesa por toda a sua vida adulta.

São cada vez mais fartas as evidências que ligam a publicidade de alimentos não saudáveis direcionada à criança ao aumento da prevalência da obesidade. Estima-se que 50% de toda a publicidade dirigida às crianças seja de alimentos e, destes, mais de 80% seja de produtos não saudáveis. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) já afirmaram que esforços devem ser feitos para assegurar que crianças estejam protegidas do impacto da publicidade de alimentos não saudáveis e tenham a oportunidade de crescer e se desenvolver em um ambiente protegido e adequado.

Nesse sentido, consensos jurídicos vêm sendo construídos no Brasil. Órgãos de defesa do consumidor dos Poderes Executivos Federal, Estaduais e Municipais vêm atuando contra a publicidade dirigida às crianças, a partir da interpretação conjunta do Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, do Marco Legal da Primeira Infância e da Constituição Federal.

Decisões históricas das mais altas instâncias da justiça brasileira fortalecem esse entendimento. Em 2016, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) criou o primeiro precedente que considera abusiva a publicidade de alimentos dirigida, direta ou indiretamente, ao público infantil. Um ano mais tarde, outra decisão do STJ seguiu na mesma direção. Ambas as ações eram contra multinacionais da indústria de alimentos e sobre publicidade de produtos ultraprocessados associadas com estratégias de marketing de venda casada de brindes colecionáveis.

Vários são os órgãos da administração direta que já se manifestaram oficialmente sobre o assunto em favor da restrição da publicidade dirigida ao público infantil, especialmente quanto aos casos de alimentos não saudáveis, como o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça e o Ministério da Saúde, além de órgãos consultivos como o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). Mais recentemente, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) recomendou a todos os seus membros que concentrassem atenções no combate à obesidade infantil, por meio da fiscalização da publicidade dirigida às crianças, dentre outras medidas.

Diante desse cenário, não há um único adjetivo se não retrocesso para qualificar o que a Medida Provisória 881, publicada pela Presidência da República no último dia de abril, representa para a defesa dos direitos das crianças e a promoção do direito humano à uma alimentação saudável e adequada.

No texto de seu artigo 4.º ela permite que a publicidade abusiva aconteça à margem da fiscalização do sistema judiciário quando prevê que sejam desconsiderados tais avanços construídos, como mencionado, a partir de consensos entre diversas áreas do conhecimento. Na prática, a MP coloca uma ameaça para as conquistas da sociedade brasileira e impõe um obstáculo para o avanço que vêm sendo pavimento há pelo menos duas décadas.

Esse é um momento que exige atenção, prudência e responsabilidade daqueles que elaboram e aprovam as leis no Brasil. Os direitos das crianças têm prioridade absoluta, diz a Constituição. É dessa forma que temos caminhado. É dessa forma que devemos seguir caminhando. Sem retrocessos.

*Teresa Liporace é coordenadora executiva do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec)

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