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O acordo de leniência na lei anticorrupção: precisamos nos preocupar?

Por Tiago Andreotti (*) | 23/02/2015 14:04

A possibilidade de aplicação da nova Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013) na operação Lava Jato vem causando várias preocupações e criando discussões na mídia. Por exemplo, conforme explicado no blog do Fernando Rodrigues, no dia 21/02/2015 (http://fernandorodrigues.blogosfera.uol.com.br/), existe a preocupação de que “haveria o risco de o governo federal ‘atravessar’ o atual processo de investigação” e de que “[i]nteressa ao governo federal livrar as grandes empreiteiras do país de punições que possam inviabilizar a operação dessas empresas”, e por isso o Palácio do Planalto estaria buscando formas de socorrer as principais construtoras brasileiras.

A comoção é tanta que o Ministério Público Federal, através de seu procurador Júlio Marcelo de Oliveira, entrou com um pedido de ação cautelar no dia 20/02/2015, para que “seja determinado à Controladoria Geral da União que se abstenha de celebrar quaisquer acordos de leniência com empresas envolvidas na operação Lava Jato que não tenham já celebrado acordos de leniência com o Ministério Público Federal, de modo a evitar que se celebrem acordos que possam atrapalhar o curso das investigações”. A preocupação do Procurador é a de que “o Poder Executivo Federal, por meio da CGU, estaria manietando a ação de um juiz mais na frente, que não poderia mais condenar as empreiteiras sobre as quais possa haver provas robustas de corrupção”. Além disso, o procurador estaria preocupado que a CGU estaria “atravessando” a operação do MPF e da Polícia Federal para celebrar acordos que tenham como substrato fático o mesmo conjunto de fatos já investigados pelo MPF (informações obtidas no Blog do Fernando Rodrigues).

A questão então que surge é a seguinte: seria possível um acordo de leniência causar tamanho dano nos poderes investigatórios do Ministério Público e impedir o uso de provas para eventual condenação penal e civil dos envolvidos?
Para entender a questão, é necessária uma breve análise da Lei 12.846/2013. Basicamente, o que ela fez foi criar a responsabilidade de pessoas jurídicas para a prática de atos de corrupção, tanto de atos contra a Administração nacional quanto a Administração de países estrangeiros. A lei criou dois tipos de responsabilização: a administrativa e a cível. Na primeira, a empresa está passível de sofrer a aplicação de multa e a publicação da decisão condenatória. Já na segunda, a pessoa jurídica responsável pelo ato de corrupção poderá ter a) o perdimento dos bens obtidos através da prática de corrupção decretados, b) a suspensão ou interdição parcial de suas atividades, c) a sua dissolução compulsória e d) a proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas ou instituições financeiras controladas pelo poder público, pelo prazo de 1 a 5 anos. Além dessas punições, a pessoa jurídica eventualmente condenada no processo judicial deverá reparar integralmente o dano causado pelo ilícito (art. 21, parágrafo único).

O acordo de leniência tem o condão de afastar a publicação extraordinária da decisão condenatória e de diminuir a multa aplicável em até 2/3, o que seria imposto em sede de processo administrativo, e afastaria possibilidade da imposição da proibição de recebimento de incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de intuições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, aqui já em sede judicial.
Mas o acordo de leniência, para funcionar, necessita que alguns requisitos sejam cumpridos; entre eles está a necessidade de que a pessoa jurídica admita sua participação no ilícito e coopere com as investigações, sendo necessária a identificação dos demais envolvidos e a obtenção célere de informações e documentos que comprovem o ilícito (arts. 16 e 17 da Lei 12.846/2013).

Em outras palavras, a legalidade do acordo de leniência depende da assunção de culpa por parte da pessoa jurídica que o está assinando, até porque não faz sentido acordo de leniência com quem não cometeu nenhum ilícito, e também a identificação de outros atores. Assim, um acordo de leniência que não resulta na assunção de culpa pelo ato corruptivo da pessoa jurídica é ilegal.

Desta forma, um acordo de leniência, no mínimo, estabelecerá de plano a responsabilidade da empresa que o fez, permitindo o ressarcimento do Poder Público pelos danos causados pelo ato praticado através de processo judicial, sem a necessidade de provar o ato praticado, já que seu cometimento foi assumido pela pessoa jurídica. O prejuízo máximo que um acordo de leniência mal feito pode causar é uma diminuição da multa a ser aplicada e a possibilidade da empresa continuar recebendo incentivos do governo, enquanto um acordo de leniência bem elaborado pode até mesmo obrigar a pessoa jurídica a reparar o dano para que o acordo surta efeito, além de produzir provas que possam ser utilizadas posteriormente em outros processos para responsabilizar os agentes públicos e outras pessoas jurídicas envolvidas.

Além disso, é importante ressaltar o previsto no art. 18 da Lei, que dispõe que “[n]a esfera administrativa, a responsabilidade da pessoa jurídica não afasta a possibilidade de sua responsabilização na esfera judicial”. Ou seja, mesmo que não haja acordo de leniência e o processo administrativo de responsabilização seja arquivado, o MP e a Advocacia Pública ainda têm o poder de iniciar ações judiciais para a responsabilização da pessoa jurídica que cometeu o ilícito para impor as penalidades do art. 19 e o obter o ressarcimento pelos danos causados. Um procedimento administrativo que não responsabilize uma pessoa jurídica por ato de corrupção não impede que o Ministério Público ou a Advocacia Pública promova investigações mais detalhadas. No caso do acordo de leniência, o mínimo que será estabelecido é que a pessoa jurídica é culpada, além dos documentos por ela oferecidos para provar os fatos, requisitos estes essenciais para a legalidade do acordo. Em qualquer caso, o Ministério Público ainda continua com seu poder de investigação para iniciar as medidas judicias cabíveis, tanto no âmbito da lei anticorrupção quanto fora dela, podendo até mesmo discutir o valor do dano que entenda ilegal, que eventualmente teria sido reparado através do acordo de leniência firmado.

Assim, a Lei Anticorrupção nada mais faz que criar maiores mecanismos de controle para atos de corrupção na esfera administrativa e na judicial, sem prejudicar os poderes de outros órgãos. Em outras palavras, a referida lei facilita a responsabilização de pessoas jurídicas envolvidas em atos de corrupção, tanto administrativamente quanto judicialmente, mantendo separado o poder do MP e da Advocacia Pública de buscar a responsabilização judicial para o ressarcimento dos danos cometidos com o ato de corrupção.

Portanto, não me parece que a maneira como o acordo de leniência foi estabelecido na Lei Anticorrupção crie entraves para a investigação realizada pelo Ministério Público, podendo, na pior das hipóteses, fornecer ainda mais meios de prova para uma eventual responsabilização judicial que o Ministério Público venha a promover. É claro que essa é uma Lei nova, e sua aplicação e a jurisprudência em torno dela ainda têm muito a evoluir, mas, no momento, ainda não existem razões sérias para nos preocuparmos.

(*) Tiago Andreotti, advogado

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