O avanço da ciência brasileira mostra que outro país é possível
A melhor notícia da semana, é claro, foi a punição exemplar dada aos que tentaram destruir a democracia brasileira. Mas confesso que a novidade que realmente me trouxe uma lufada de otimismo, imune a futuras aventuras tarcísicas, digo, narcísicas da direita escrota, foi a do novo medicamento desenvolvido pela UFRJ para tratamento de lesões na medula espinhal.
Coloquemos, porém, os pingos nos is. A esta altura do campeonato, não temos como saber se e quando ensaios clínicos comprovarão que a aposta da pesquisadora Tatiana Sampaio e seus colegas de fato vai permitir que muitas pessoas recuperem seus movimentos. Qualquer resultado positivo seria maravilhoso, mas, mesmo que a promessa terapêutica acabe não vingando, ainda assim ela serve como um vislumbre muito necessário daquilo que o Brasil pode ser.
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Eu sei que, para alguns, isso parece quase inacreditável diante do emburrecimento doentio que infectou o debate público nacional dos anos 2010 (uma infecção que, vale ressaltar, foi-nos transmitida, em boa parte, pelos ventos do Norte, para cá soprados por um tal de Olavo, de infeliz memória, e pela ganância das "Big Techs"). Muita gente acha impossível que as universidades brasileiras sejam capazes de produzir conhecimento de ponta e as enxergam como meras fábricas de clonar "comunistas" (ainda que esse povo não consiga produzir nem meia frase coerente se lhes pedirmos que definam "comunismo").
Eu, porém, tenho visto coisa muito diferente nos 24 anos (por enquanto, se Deus quiser) que tenho passado escrevendo sobre ciência brasileira. Meninos, eu vi, como dizia aquele velho poeta.
Sei, por exemplo, que os pesquisadores financiados pelo Estado brasileiro, gastando uma fração minúscula do que costuma cair na conta de seus colegas americanos e europeus, elucidaram rapidamente o mistério da zika. Descobriram como a Amazônia produz a própria chuva e ainda a exporta para meio continente —isso, é claro, enquanto ainda deixarmos, dada a sanha do desmatamento. Vi como eles entraram na revolução do DNA antigo, hoje a janela mais revolucionária para a compreensão do passado da nossa espécie, e como conseguem desenvolver vacinas, novos métodos agrícolas, novos materiais.
Esses e muitos outros exemplos mostram que temos muita gente fazendo ciência de altíssimo nível no Brasil, mesmo com falta de grana e problemas organizacionais e burocráticos que fariam gringos sentarem às margens do rio Piedra e chorarem na primeira meia hora. Quem disser o contrário está simplesmente mentindo.
A dificuldade de transformar isso num motor de transformação econômica e social mais poderoso não me parece simples de explicar. Mas nada me tira de cabeça que o tão decantado "setor produtivo", os donos do dinheiro grosso que gostam de bater no peito por "dar emprego", são parte do problema por estarem viciados numa visão de mundo essencialmente extrativa.
Muitos deles jamais deixaram de lado a mesma mentalidade dos vice-reis de Vila Rica no século 18 (ou dos vice-reis da Samarco e da Vale nas mesmas Minas Gerais, só que no século 21): o Brasil não existe para ser construído e transformado, mas para ser minerado. Abram-se as voçorocas, extraia-se delas tudo o que puder ser tirado, e pronto.
Dá para fazer diferente, porém. Façamos.
(*) Reinaldo José Lopes, jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral", através da Folha de S.Paulo
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