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O que o Brasil ganha com as mudanças climáticas

Por Marcos Buckeridge (*) | 26/02/2019 09:39

O Brasil precisa acordar. Diante do maior desafio já enfrentado pela humanidade, a mudança climática global, o País tem à sua frente uma janela de uma a duas décadas para despertar. Precisa intensificar programas de adaptação que, ao mesmo tempo, aproveitem as oportunidades que o enfrentamento das consequências desse grande problema oferece.

Evidências científicas mostram que até meados de 2040 o mundo deverá atingir a marca de 1,5oC, caso continuemos emitindo gases de efeito estufa como ainda fazemos hoje[1].

As pessoas perguntam: mas o que significa para mim essa pequena variação de apenas 1oC? De fato, 1oC, ou mesmo 1,5, ou até 3oC podem significar muito pouco se considerarmos nossas preferências pessoais. Porém, uma variação na temperatura média mundial de 1,5oC implica variações de temperatura, chuvas e vários eventos climáticos bem mais amplos e intensos do que o significado pessoal de 1,5oC.

Os efeitos climáticos são, sobretudo, o que os climatologistas chamam de eventos extremos, ou seja, mudanças no clima local que provocam enchentes, secas, ondas de calor etc. A frequência desse tipo de evento já vem aumentando em vários lugares do planeta. Em outras palavras, teremos um maior número de noites quentes, maior frequência de tempestades, maior probabilidade de ocorrência de eventos mais fortes como furacões e tornados. Tudo isso exacerba os riscos relacionados à saúde humana, infraestrutura das cidades, agricultura e muitos outros setores da sociedade.

A Conferência das Partes (COP) 21, realizada em Paris em 2015, encomendou um relatório especial ao Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU. Os governos querem saber o que fazer para evitar que o mundo ultrapasse a marca de 1,5oC.

O IPCC reuniu 91 pesquisadores de 40 países que trabalharam durante dois anos com a contribuição de mais 133 pesquisadores de todo o mundo. Os cientistas do IPCC examinaram mais de 6 mil publicações científicas e responderam a mais de 42 mil comentários de cientistas e governos dos 195 países da Organização das Nações Unidas (ONU). Estes números são importantes, pois salientam que as conclusões a que chegamos nesses relatórios são fortemente embasadas na melhor ciência que existe no mundo.

Na sua imensa maioria, as publicações utilizadas são de papers científicos editorados. Além disso, o IPCC proíbe fazer prescrições políticas. Em outras palavras, não podemos indicar caminhos para os tomadores de decisão. As conclusões são colocadas como o estado de arte da ciência naquele tópico e naquele momento; por isso, devem servir apenas como guia para que o tomador de decisão escolha por onde ir com embasamento sólido. Se levados em consideração, os pontos levantados pelos relatórios do IPCC tendem a diminuir a probabilidade de que decisões acabem levando ao erro.

Cenários possíveis para um mundo em aquecimento

No capítulo 3 do relatório especial 1,5oC[2], tendo como base o conhecimento científico disponível em 2018, descrevemos três possíveis cenários para um mundo mais quente. No cenário 1, os países da comunidade internacional se uniriam em torno do Acordo de Paris e adotariam metas bem mais ambiciosas. Os países se uniriam com o dispêndio de uma enorme soma de dinheiro e a aplicação de diversas tecnologias sustentáveis principalmente relacionadas ao uso da terra e à preservação da biodiversidade.

Essas tecnologias/ações incluem: agricultura ecológica, uso de bioenergia, erradicação do desperdício de alimentos, remanejamento de espécies para evitar sua perda e ações fortes no sentido da conservação da biodiversidade. Tudo isso serviria para evitar as emissões de gases do efeito estufa (CO2, metano, N2O) e ajudaria a manter o planeta bem próximo da marca de 1,5oC. Mesmo evitando alguns dos impactos negativos das mudanças climáticas, o mundo ainda apresentaria sequelas dos efeitos, que perdurariam por todo o século XXI.

No cenário 2 haveria a continuidade do esforço internacional para cumprir o Acordo de Paris. No entanto, sem a adoção de metas ambiciosas. Com isso, o esforço mundial diminuiria o ritmo de aumento da temperatura média global. Mas só depois de um período em que o mundo passasse por algumas décadas a mais de 2oC ou mais. Nesse cenário o esforço poderia levar o mundo em 2100 a baixar a temperatura média, mas ainda assim continuaríamos com mais de 1,5oC.

Esse cenário se concretizaria caso não consigamos fazer o bastante para diminuir as emissões. Nele teríamos que gastar muito mais para fazer adaptações de forma que as populações e os sistemas urbanos e industriais não sofram excessivamente. Os prováveis efeitos do cenário 2 seriam a diminuição na produção de alimentos e piora na sua qualidade, levando ao aumento de pobreza e intensificação na migração de refugiados do clima. Veríamos a eliminação total dos recifes de corais, a destruição da costa em vários locais e a deterioração e perda intensa de florestas.

No cenário 2, serão essenciais tecnologias, como a produção de bioenergia acoplada à captura de carbono, prevenção da destruição de florestas, aumento da arborização urbana e desenvolvimento de meios mais eficientes de produzir e consumir alimentos. Teríamos ainda que ajustar a produção agrícola para continuar produzindo alimentos em quantidade e com qualidade suficientes para alimentar uma população crescente, que ruma para os 9 bilhões ainda neste século.

No cenário 3 o Acordo de Paris é abandonado e os países passam a adotar medidas específicas, orientadas localmente. Apesar de em muitos casos a emissão de gases do efeito estufa diminuir, devido ao investimento dos países ricos para protegerem as suas respectivas populações, no planeta como um todo as mudanças são insuficientes para deter o aumento da temperatura.

Com isso, a marca de 1,5oC seria atingida já em 2030. Em uma combinação com os ciclos El-Niño/La-Niña, anos catastróficos se seguem, com a intensificação de eventos extremos como ondas de calor, secas e alagamentos. Com a temperatura média aumentando ao longo do século XXI, grande parte dos biomas do mundo seria perdida, a produção de alimentos cairia drasticamente e o que ainda pudesse ser produzido seria de qualidade inferior ao padrão de 2018. Os efeitos drásticos dos eventos extremos teriam potencial de causar desastres em vários lugares, levando à morte e à fome, exceto pelos países mais ricos que teriam meios financeiros para pagar pelas adaptações. No caso do cenário 3, teríamos que usar tecnologias chamadas de geoengenharia.

Uma delas é a Modificação da Radiação Solar, que consiste na pulverização de aerossóis – partículas – na estratosfera que sejam capazes de espalhar a luz e resfriar a superfície do planeta. Outro exemplo é a fertilização do mar com ferro para fazer a biodiversidade florescer e, com a fotossíntese fortemente aumentada, sugar mais CO2 da atmosfera. Tecnologias como essas custariam uma fortuna e apresentam riscos enormes. Além disso há um problema de alta complexidade: precisaríamos de governança planetária que possa decidir iniciar processos que irão afetar a todos no planeta. O mundo vem desenvolvendo formas de discutir assuntos globais de forma cada vez melhor.

Desde a formação do Clube de Roma na década de 60 até as organizações das Conferências das Partes mais recentes, houve um avanço significativo. No cenário 2 poderíamos tanto ter um avanço ainda maior e um trabalho organizado e eficiente dos países da ONU, mas também poderíamos ter um esfacelamento da organização conseguida até 2018 e com isso uma ausência de governança mundial nas próximas décadas.

O estado atual do nosso planeta permite supor que o cenário 2 seria o mais provável. O cenário 1 talvez seja o menos provável devido à enorme deficiência de integração na governança mundial nesse momento, uma vez que o mundo parece estar mergulhando numa fase de rivalidades nacionais. É notável que a questão principal agora seja o tempo. A pergunta a se fazer é se teremos ou não tempo para agir de forma organizada para evitar o avanço das mudanças climáticas.

A ciência vem cumprindo o seu papel, deverá continuar produzindo e analisando dados. O papel das organizações internacionais que compilam dados, como o IPCC, será crucial nos próximos anos. Uma coisa é certa, para podermos pegar os caminhos que nos levem aos menores impactos possíveis, o avanço na governança mundial, através de eventos como as COPs, terá que ser mais rápido.

Quatro pontos focais para o Brasil num cenário de mudança climática de 1,5oC

No Brasil, alguns dos efeitos das mudanças climáticas podem ser considerados como grandes problemas, mas por outro lado poderiam se transformar em oportunidades.

A devastação da Amazônia é um grande problema, não só para os brasileiros, mas para o mundo. Já está bem estabelecido cientificamente que a maior floresta tropical do mundo tem um papel fundamental na estabilidade do clima em várias regiões do planeta. Para nós, brasileiros, basta olhar aquela longa mancha nos mapas, que vemos durante os boletins meteorológicos diários na TV, para entender que, em um certo período do ano, há uma faixa contínua de nuvens que vai da Amazônia até a região sudeste do Brasil.

A água dessas nuvens irriga a maior parte do sistema brasileiro de produção de alimentos, que é mais intenso nas regiões Sudeste e Centro-Oeste e que depende em parte da água amazônica. É fácil imaginar o que aconteceria se a floresta amazônica desaparecesse. Simplesmente não teríamos água suficiente para produzir alimentos e bioenergia. Por outro lado, há mecanismos que dão suporte a estratégias de manutenção da floresta.

Um deles é chamado de REDD+ – Redução de Emissões provenientes de Desmatamento e Degradação florestal, com o + significando: a) conservação dos estoques de carbono florestal; b) manejo sustentável de florestas; e c) aumento dos estoques de carbono florestal. O REDD+ recebe financiamento internacional e tem tido relativo sucesso no Brasil. Como o Brasil é pioneiro no uso dessa estratégia, pode aperfeiçoá-la antes que outros países o façam.

A vantagem é preservar a Amazônia e com isso evitar que nossa agricultura pereça, o que em si já é importante. Com o aperfeiçoamento e o domínio de uso do REDD+, o Brasil poderia assessorar outros países a fazer o mesmo em suas florestas. E também usar o conhecimento como estratégia de ganhos de mercado como dominadores da tecnologia. Saber como usar o REDD+ com eficiência pode ser uma grande vantagem tecnológica e social, ajudando a diminuir a pobreza e ao mesmo tempo estimulando a formação de empresas que tragam divisas para nós.

O segundo grande foco está relacionado com as mudanças climáticas associadas ao aumento de temperatura e suas consequências para a agricultura. No início, um aumento de temperatura pareceria benéfico – desde que haja água suficiente, o que, como vimos, depende em parte da preservação da Amazônia. Porém, na medida em que eventos extremos de seca ou excesso de chuvas se tornem cada vez mais intensos e frequentes, as perdas na agricultura poderão ser significativas.

Nesse cenário, para continuar produzindo alimentos, nossos agricultores precisariam transferir culturas inteiras de uma região para outra mais adaptada. Imagine as perdas econômicas de tais operações! Mudar de lugar culturas agrícolas como a de café, ou de laranja (em que o Brasil tem expressão mundial), envolveria esperar anos até que novas árvores atinjam bons níveis de produção. Os prejuízos seriam enormes. De fato, não se sabe se essas mudanças são viáveis em um curto espaço de tempo.

Por isso, é preciso que nos adiantemos. A ciência da agrometeorologia brasileira é forte e já vem fazendo os cálculos. Paralelamente, será necessário intensificar as aplicações tecnológicas que permitam adaptar as plantas que usamos como culturas agrícolas para que enfrentem mais facilmente os extremos de secas e alagamentos. Para isso, temos que lançar mão da genética e das novas técnicas de biologia molecular, que podem permitir o redesenho de genomas e dessa forma ajustar as respostas das plantas o mais rapidamente possível.

O Brasil tem ótima ciência e tecnologia para tal. Tem ainda um empresariado maduro que pode se unir aos cientistas para evitar os efeitos deletérios das mudanças climáticas. É importante lembrar, no entanto, que precisa ser feito o mais rapidamente possível. Devemos ainda lembrar que essas adaptações impulsionariam o Brasil a acelerar ainda mais o desenvolvimento de tecnologias relacionadas à produção de alimentos, o que nos daria uma vantagem competitiva no mercado internacional ainda maior.

As cidades são o terceiro grande foco. Até 2040, 90% da população mundial estará vivendo em cidades. Essa urbanização intensa vem criando condições artificiais geradas pelas ações humanas que aumentam consideravelmente a vulnerabilidade das populações.

As cidades formam ilhas de calor e ao mesmo tempo se apropriam dos ecossistemas ao seu redor. Se houver florestas, elas são normalmente destruídas ou severamente transformadas. Se houver mar, os seres humanos constroem ao longo da costa, alteram os ecossistemas marinhos de várias formas através da poluição. Ainda que as cidades sejam uma forma de melhorar vários aspectos da vida humana (melhor acesso à comida, energia e outros bens), o outro lado é que há aumento na poluição, na violência e outros aspectos negativos.

Um aumento de temperatura no planeta que seja capaz de alterar a produção e qualidade da comida, que tenha potencial de gerar desastres (enchentes e escorregamentos de encostas), pode causar caos nas cidades. Algumas das cidades globais mais importantes do mundo (Nova York, Londres e Paris, por exemplo) já vêm investindo significativamente em adaptações às mudanças climáticas. No Brasil, megalópoles como São Paulo e Rio de Janeiro já começaram a investir.

Nossas grandes cidades têm uma história relativamente longa, estando à frente das cidades que vêm crescendo na África e na Ásia. Por já vivermos em temperatura mais alta (São Paulo já vive a 3oC), nossas soluções de tecnologia urbana poderão ser exemplos para outras cidades no planeta. Aqui também há muitas oportunidades. Cidades como São Paulo são muito ricas e, se investirem em ciência e tecnologias urbanas, podem se juntar às principais cidades do mundo e serem fornecedoras, ao invés de consumidoras, de soluções.

O quarto foco é a produção de energia. O Brasil tem a matriz energética com a maior proporção de renováveis do planeta. Temos alta proporção de energia que vem das hidroelétricas e temos o etanol combustível distribuído em escala nacional. Fomos pioneiros e somos um exemplo para o mundo nesse aspecto. Porém, espera-se que a demanda por energia aumente muito nos próximos anos, de forma que precisaremos aumentar sua produção. No caso das hidrelétricas o limite já foi atingido.

Porém, o etanol ainda poderia ser expandido consideravelmente, sem efeitos sobre biomas preservados ou sobre a produção de alimentos. Em um mundo que acredita que a eletrificação será o futuro, de onde tiraremos mais energia elétrica? Temos um grande potencial para produzir energia solar. O Brasil tem como se adaptar bem aí, desde que um bom planejamento energético, baseado no desenvolvimento de tecnologia avançada, seja seguido por décadas.

Nos quatro casos, que são estratégicos para as próximas décadas no Brasil, não podemos ficar à mercê de estratégias de governo. São necessárias, impreterivelmente, estratégias de Estado. Não parece haver opção, sejam diferentes governos ou governos de um mesmo partido. O Brasil precisa entender que há estratégias que não podem depender de orientações ideológicas. As adaptações terão de ser executadas e, é claro, aperfeiçoadas, por décadas para o País se tornar viável para as gerações futuras.

Mudanças climáticas e mudanças tecnológicas: como lidar com tudo ao mesmo tempo?

Para as próximas décadas, se prevê que o avanço tecnológico deverá ser estonteante[3]. De fato, já estamos sentindo em todo o mundo um certo descompasso entre produção de inovações e a velocidade com que os governos tomam decisões. Em regiões como a Califórnia, que está entre as que têm as maiores taxas de inovação do mundo, já se discute se a tecnocracia poderia substituir o sistema democrático nos Estados Unidos[4].

Uma das consequências desse descompasso entre a produção de inovação e a governança política é o aumento no ativismo das populações em várias regiões do mundo. É provável que nas próximas décadas a tecnologia evolua tão rápido que provavelmente se desconectará dos “tempos da política” como os conhecemos.

Considerando uma maior probabilidade de vivermos algo parecido com o cenário 2 ao longo do século XXI, teremos de lidar com as adaptações aos impactos das mudanças climáticas mais específicas do Brasil e, ao mesmo tempo, manter o nosso país na vanguarda do avanço tecnológico exponencial. Não dá para descartar a possibilidade de que, em meio a esse desenvolvimento, soluções disruptivas surjam e no fim nos levem a uma espécie de caminho híbrido entre os cenários 1 e 2. Mas como não temos como saber ao certo se tal ocorrerá, o melhor é manter o pé no acelerador dos dois: adaptação e desenvolvimento científico e tecnológico.

É essencial pensar que essa ambiguidade tem também o seu lado positivo. Enfrentar as mudanças climáticas de uma forma disruptiva pode ser um caminho para o Brasil se modernizar. A nossa governança política está ficando obsoleta rapidamente. Se não mudarmos rapidamente a nossa forma de lidar com o nosso futuro, ficaremos para trás com tal velocidade que, num piscar de olhos, já estaremos novamente entre os países subdesenvolvidos do planeta.

[1] Podemos definir 1,5oC de uma maneira simples dizendo que, se subtrairmos o valor médio de temperatura entre 1850 e 1900 – período em que ocorreu a revolução industrial na Inglaterra – da média de temperatura mundial do período entre 2006 e 2016, estamos hoje cerca de 1oC acima daquela época. Cientistas de diferentes lugares do planeta utilizaram modelagens computacionais que simulam o que deve acontecer no futuro com base em eventos passados. É assim que calculam o que pode acontecer e estimam uma passagem por 1,5oC entre 2030 e 2050.

[2] https://www.ipcc.ch/site/assets/uploads/sites/2/2018/11/SR15_Chapter3_Low_Res.pdf

[3] Kurtzweil, R. (2018) A singularidade está próxima: quando os humanos transcendem a biologia. Iluminuras, 626 p.

[4] “Technocracy vs Democracy; Are Politicians Really in Control?” https://www.gaia.com/article/is-there-a-technocracy-secretly-controlling-our-government

(*) Marcos Buckeridge é diretor do Instituto de Biociências da USP e presidente da Academia de Ciências do Estado de São Paulo.

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