Perder um animal de estimação é motivo de luto
Na semana passada, no meio de uma troca de mensagens de trabalho, um colega com quem não divido o elevador emocional da vida mandou: "Perdi meu gato de uma hora pra outra. Sei que você me entende." Não era uma confidência íntima, nem um desabafo dramático. Era mais um pedido de licença para sofrer um tipo de luto ainda não plenamente autorizado socialmente. Um luto menor. Perder um animal, dizem, é "triste, mas nem se compara".
Não se compara mesmo. Em muitos casos, é pior.
E veja: eu nem gostava de gato. Sempre me pareceu uma mini jaguatirica prestes a furar meu olho ou levar um pedaço da minha canela. Mas gato não se impõe, seduz. E, com um pouco de intimidade, você aprende que ele te ignora na maior parte do tempo e, quando decide te dar atenção, é sempre quando você está atrasada, ocupada ou deitada numa posição milimetricamente desconfortável. Gente pegajosa sempre me deu preguiça, e gato me parecia a versão felina do grude passivo-agressivo. Até que tive dois. E mordi a língua, o preconceito e alguns fios do meu próprio cabelo, porque eles simplesmente tomaram conta da casa, da rotina e, no fim, do coração. Sem pedir. Sem invadir.
Escolhi não ter filhos por falta de instinto e por excesso de responsabilidade. Sabia que não teria paciência para tarefas escolares, noites em claro nem disposição para ter meu nome citado em sessões de terapia daqui a 20 anos. Mas trato meus gatos com o amor que dedicaria se tivesse parido, e falo isso sem constrangimento. A relação que tenho com eles é íntima, cotidiana, visceral. Tem rotina, tem entrega, tem dependência e uma confiança que poucos humanos merecem. Eles sabem quando eu tô triste, brava ou só quero existir em silêncio. Só querem estar por perto. Ou a três metros de distância, dependendo do humor.
Então, meu bem, nenhum tipo de amor cabe numa régua emocional. Quem convive com um animal por anos, o vê adoecer, melhorar, envelhecer, conhece o som das patinhas cruzando o corredor, já teve a cama invadida, o teclado interditado e o coração completamente capturado, sabe: a dor é real.
Tenho vontade de botar no colo quem chora, com vergonha, o luto por um bicho. Como se existisse uma espécie de IBGE dos afetos, uma tabela oficial que determina quanto sofrimento é aceitável por perda. Perdeu o pai? Sofra com intensidade 10. Perdeu o namorado? Intensidade 7, se ele prestava. Agora, perdeu o gato? Dois no máximo, com prazo de validade.
Quando meu colega disse que sabia que eu o entenderia, percebi que buscava empatia para viver um luto que ainda é ridicularizado, abafado, diminuído —porque falta espaço para sofrer por um animal, sem vergonha e sem escala de comparação.
Chore, meu querido. Chore o quanto for preciso. Gato não é filho, mas é rotina, é testemunha, é laço. E quando esse laço arrebenta, dói muito mesmo. É motivo de vazio, de tristeza, de luto.
(*) Mariliz Pereira Jorge, jornalista e roteirista de TV, através da Folha de S. Paulo
Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.