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Possibilidade de o delegado proibir o advogado de filmar o interrogatório

Por Paola Tauane Terçariol Mucci e Luiz Carlos Mucci Neto (*) | 15/03/2024 13:30

Diante do contexto cada vez mais digital e das transformações nas práticas policiais e jurídicas, emerge uma discussão relevante sobre a possibilidade do delegado de polícia proibir o advogado de filmar o interrogatório. Este artigo se propõe a analisar os fundamentos jurídicos envolvidos nessa questão delicada, considerando as disposições legais e os princípios constitucionais que regem o processo penal brasileiro.

Não obstante a complexidade do tema em debate, entende-se que a autoridade policial poderá proibir a filmagem por meio audiovisual dos interrogatórios dos investigados e dos depoimentos das vítimas e das testemunhas, durante o inquérito policial.

Inicialmente, é essencial ressaltar a importância do interrogatório como um dos atos mais relevantes no curso de uma investigação criminal. Trata-se de um momento crucial em que o investigado tem a oportunidade de exercer sua ampla defesa e contraditório, conforme preconizado pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Nesse sentido, o direito ao silêncio e o direito de ser assistido por um advogado são garantias fundamentais consagradas pela Constituição Federal, artigo 5º, incisos XXX e LV, e da Convenção Americana dos Direitos Humanos, artigo 8º, item 2, alíneas “d” e “g”.

Surge a controvérsia quanto à possibilidade de o advogado filmar o interrogatório realizado pela autoridade policial. Em muitos casos, advogados têm buscado registrar em vídeo esses procedimentos como forma de resguardar os interesses de seus clientes e garantir a lisura do processo investigativo.

Contudo, a autoridade policial tem proibido essa prática com fundamento no sigilo do inquérito policial e sua função de proteção ao investigado e ao êxito da investigação e, além disso, como forma de proteção dos direitos da personalidade das partes envolvidas.

O artigo 7º, inciso XXI, da Lei nº 8.906/94 estabelece que o advogado tem a prerrogativa de assistir seu cliente durante a apuração das infrações, nos interrogatórios e depoimentos, assim como em todos os elementos investigatórios e probatórios decorrentes, inclusive, poderá, de forma complementar, apresentar razões e quesitos que poderão ou não ser admitidos pela autoridade, conforme a sua discricionariedade.

A concepção de apresentação complementar de quesitos pelo advogado durante os interrogatórios realizados no inquérito policial advém do fato da autoridade policial ser o presidente do procedimento apuratório, sendo certo que permitir que outra pessoa o conduza, acaba por suprimir a competência constitucional do delegado de polícia.

Fidelidade das informações e dispensa de autorização judicial - Escorados na prerrogativa acima, os advogados filmam os depoimentos prestados por seus clientes com fundamento no §1º do artigo 405 do Código de Processo Penal que estabelece que: “Sempre que possível, o registro dos depoimentos do investigado, indiciado, ofendido e testemunhas será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinada a obter maior fidelidade das informações”.

Reforçando a previsão legal acima, evoca-se a aplicação subsidiária do artigo 367, §§ 5º e 6º do Código de Processo Civil que permite expressamente a gravação de audiência pelas partes, sem necessidade de autorização judicial prévia.

Funções do sigilo - No entanto, é incorreto transpor tais argumentos para o inquérito policial sem uma análise pormenorizada das circunstâncias fáticas, sob pena de lesar os próprios direitos fundamentais dos investigados e dos demais envolvidos na investigação.

A doutrina moderna e a Lei nº 14.735/2023 entendem que a autoridade policial é o primeiro garantidor das garantias fundamentais do investigado, sendo certo que “o inquérito policial é o processo administrativo presidido pelo delegado de polícia natural, apuratório, informativo e probatório, indispensável e preparatório e preservador”, sendo certo que há a presença do contraditório diferido”.

Conforme estabelece o artigo 20 do Código de Processo Penal, cabe à autoridade policial determinar o sigilo ao caderno apuratório com o intuito de garantir o êxito das investigações e quando for de interesse da sociedade. Trata-se de exceção ao princípio da publicidade dos processos públicos previstas na própria constituinte de 88, artigo 93, inciso IX.

A partir o advento Constituição Federal de 1988, o sigilo na fase pré-processual possui a função de proteger a intimidade de todos os envolvidos. Portanto, não tem o condão de suprimir o direito de defesa, sobretudo, pelo fato da existência da Súmula Vinculante nº 14 que permite o acesso a todos os procedimentos de investigação, com ou sem procuração, salvo às diligências em andamento.

O sigilo possui duas funções: (a) garantista; (b) utilitarista. A função garantista protege o investigado e os demais envolvidos da exposição indevida aos meios de comunicações, sendo forma de salvaguardar o direito da fundamental à intimidade, do artigo 5º, inciso X, da CF/88, bem como os direitos da personalidade, dos artigos 11 e 21 do Código Civil de 2002.

Evita que a autoridade policial responda por crime de abuso de autoridade do artigo 38 da Lei nº 13.868/2019, qual seja: “Antecipar o responsável pelas investigações, por meio de comunicação, inclusive rede social, atribuição de culpa, antes de concluídas as apurações e formalizada a acusação” com pena de detenção de seis meses a dois anos e multa.

Ainda, impede que haja a divulgação da dinâmica do crime e que a vítima sofra revitimização sobre o ocorrido.

Outrossim, a função utilitarista garante o êxito na apuração dos fatos, pois a divulgação de informações sensíveis à apuração do delito pode contaminar as diligências e o êxito das práticas policiais.

Atualmente, as Polícias Civis e a Polícia Federal já possuem recursos audiovisuais para gravar o depoimento das vítimas e das testemunhas, assim como o interrogatório dos investigados, os quais são juntados, posteriormente, nos autos dos inquéritos policiais.

Nota-se que o fato da autoridade policial proibir a filmagem feita pelo advogado no inquérito policial não traz nenhum prejuízo ao direito de defesa ou ao contraditório, pelo contrário, é forma de assegurar, concomitantemente, os direitos e garantias não apenas do investigado, mas também dos demais envolvidos na investigação criminal.

Entendimento do STJ - Não se pode olvidar que o julgamento do HC nº 662.690/RJ pelo Superior Tribunal de Justiça criou certa celeuma no tema, à medida que se passou a entender como direito subjetivo do advogado gravar os depoimentos e interrogatórios na fase pré-processual de maneira indiscriminada.

O Tribunal da Cidadania entendeu que a conduta do advogado que filma o promotor de justiça durante o procedimento investigatório criminal não pratica o crime do artigo 10 da Lei nº 9.296/96, sendo considerada como ato antiético.

Artigo 10 da Lei n. 9.296/96: Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, promover escuta ambiental ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.

Isso porque “a realização da gravação, nas circunstâncias em que levada a efeito – em oitiva formal de assistido seu, oficial e notariamente registrada em sistema audiovisual pela autoridade administrativa responsável pelo ato – não se confunde com a escuta ambiental indevida e é legalmente permitida, independentemente de prévia autorização […]”.

Percebe-se que a razão de decidir do HC nº 662.690/RJ não estabeleceu como direito subjetivo do advogado em gravar todos os atos realizados na fase pré-processual, isso porque abordou outro objeto distinto do aqui tratado.

Com o fim de transpor a discussão para a vida prática, propõe três casos que envolvem a prerrogativa de gravar o cliente e a discricionariedade do delegado de polícia em proibir:

(a) José está sendo investigado por integrar organização criminosa voltada para a prática do tráfico de drogas, artigo 2º da Lei n. 12.850/13 e artigo 33 da Lei n. 11.343/06. Ao prestar depoimento, José confessou o crime e realizou colaboração premiada denunciando os seus comparsas, oportunidade em que o advogado pediu autorização do Delegado de Polícia para gravar o ato. No ato, o Delegado negou o pedido do advogado com fundamento no sigilo do inquérito como forma de proteger o colaborador, Lei n. 12.850/13 e Lei n. 9.807/99, para evitar que o vazamento do vídeo e posteriores ataques à vida e a integridade física do delator.

(b) Joana foi vítima do crime de estupro, artigo 213 do CPB, cometido por José. Ao ser chamada na Delegacia de Polícia para prestar depoimentos, narrou precisamente a dinâmica do crime contra a sua dignidade sexual. O advogado de Joana solicitou autorização para filmar o conteúdo dos relatos. No entanto, o Delegado de Polícia negou a solicitação e utilizou o sigilo do inquérito para proteger o direito à intimidade, à imagem e para evitar a revitimização.

(c) O menor de idade José da Silva foi apreendido pela prática do crime de latrocínio consumador, do artigo 157, §3º, inciso II, do CPB. Durante o depoimento colhido na Delegacia, o seu advogado por iniciativa própria iniciou a gravação do ato, o qual foi interrompido pelo delegado de Polícia, o qual fundamentou sua proibição no sigilo como garantia ao princípio do melhor interesse da criança, do artigo 3º do Estatuto da Criança e Adolescente, e manutenção da integridade física do investigado com receio de eventual linchamento.

Percebe-se que nos exemplos mencionados acima, a autoridade policial já estava realizando a gravação audiovisual de todos os depoimentos prestados e que, posteriormente, disponibilizaria nos autos do caderno apuratório, sendo desnecessária a gravação particular pelo advogado ali presente no ato.

Diante desse embate de interesses, é necessário buscar um equilíbrio entre a garantia dos direitos do investigado e a preservação da ordem e da segurança no ambiente policial. Uma possível solução seria estabelecer diretrizes claras e objetivas para a filmagem do interrogatório, garantindo que a prática seja realizada de forma transparente e responsável, sem comprometer os princípios fundamentais do processo penal.

Ademais, é importante ressaltar que o direito de filmar o interrogatório não deve ser interpretado como absoluto, devendo ser exercido com cautela e respeito aos limites estabelecidos pela legislação e pela jurisprudência.

Nesse sentido, cabe à autoridade policial, por meio de decisões fundamentadas e no exercício da sua discricionariedade, identificar quais são os caso em concreto que é possível a filmagem pelo advogado e quais devem ser proibidos.

Desse modo, entende-se que a autoridade policial poderá proibir que os advogados filmem as declarações prestadas tanto pelos investigados quanto pelas vítimas e testemunhas, desde que o faça de forma fundamentada e utilize o sigilo do inquérito policial como garantir aos direitos fundamentais e da personalidade dos envolvidos, bem como prime pelo êxito da investigação.

(*) Paola Tauane Terçariol Mucci é advogada tributarista e pós-graduanda no Ibet.

(*) Luiz Carlos Mucci Neto é aluno do Curso de Formação Policial de Delegado de Polícia do Espírito Santo (Acadepol Vitória) e pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal Econômico pela PUC-PR.

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