Se não houver amanhã
E se não houver amanhã? Essa pergunta nos atravessa como uma flecha silenciosa, e, por instantes, nos faz parar. A vida, tão corrida, tão barulhenta, raramente nos dá tempo de refletir sobre a brevidade que a sustenta. Acreditamos que teremos anos pela frente, que o futuro é um território sempre aberto e disponível, que nossos planos podem esperar, como se a vida fosse uma prateleira infinita. Mas e se não for?
O hoje é tudo o que temos. Um punhado de horas que se dissolvem no ar, um sopro que pode se perder. Ainda assim, tratamos o presente como se fosse descartável, como se o que importa estivesse sempre no dia seguinte. Guardamos palavras no bolso, gestos na gaveta, sonhos no calendário. Esperamos a ocasião certa, o momento perfeito, a tranquilidade absoluta que nunca chega.
Mas o amanhã é uma promessa que não pertence a nós. O relógio não nos pergunta se queremos mais tempo. O destino não nos consulta antes de virar a página. Tudo pode cessar de repente: a voz que hoje ouvimos pode calar-se, o abraço que adiamos pode já não estar disponível, o sonho que empurramos para depois pode nunca mais encontrar terreno.
Por isso, se não houver amanhã, o que terá valido a pena?
— Teremos amado o suficiente?
— Teremos dito o que precisávamos dizer?
— Teremos experimentado a alegria simples do agora, ou apenas planejado felicidades distantes?
É nesse ponto que a consciência se torna chamada à ação. Viver o hoje não significa abandonar o futuro, mas entender que ele se constrói aqui, neste instante. Cada atitude, cada palavra, cada escolha é um tijolo colocado na estrada que talvez nunca percorramos até o fim — mas que, de qualquer forma, precisa ser erguida.
Agir hoje é coragem
Executar planos, ainda que pequenos, é ato de amor por nós mesmos. Sonhar é bonito, mas realizar é o que dá corpo à existência. O livro que repousa fechado na estante, o texto que ficou no rascunho, a viagem sempre adiada, a ligação que nunca fizemos — tudo isso pode virar apenas espectro, se não houver amanhã.
Amar hoje é urgência
Quantas vezes adiamos o “eu te amo”, guardando-o como se houvesse tempo de sobra? Quantas vezes deixamos para depois um abraço, uma visita, um perdão? A verdade é que cada encontro pode ser o último, e cada silêncio pode se transformar em vazio eterno. Se não houver amanhã, o que restará é o arrependimento pelo amor que não ousamos declarar.
Escolher hoje é liberdade
A vida é feita de decisões que não podemos terceirizar. Muitas vezes, adiamos escolhas por medo do erro. Mas não escolher também é escolher — é abrir mão de escrever o próprio caminho. Se não houver amanhã, ao menos que a história tenha sido escrita com nossa caligrafia, e não deixada em branco pela covardia.
O hoje não precisa ser grandioso para ser significativo. Pode estar num café compartilhado, numa palavra de consolo, numa risada despretensiosa. Pode estar em começar algo simples: escrever a primeira linha de um livro, plantar a primeira semente, dar o primeiro passo de uma caminhada. São os pequenos atos que tornam o presente habitável, e que nos protegem do vazio de uma vida só planejada.
Não se trata de viver em desespero, mas em consciência. De saber que cada pôr do sol é único, que cada conversa pode ser irrepetível, que cada olhar pode ser despedida. Viver hoje é honrar o tempo que nos foi dado, sem arrogância de achar que ele será infinito.
Se não houver amanhã, que ao menos o hoje tenha sido pleno. Que tenhamos falado com franqueza, que tenhamos feito escolhas com coragem, que tenhamos amado com intensidade. Que o presente tenha sido vivido com tanta inteireza, que a falta de um futuro não pareça tragédia, mas apenas o fim natural de um ciclo bem aproveitado.
A vida é breve demais para ser adiada.
O amanhã é apenas hipótese.
O hoje, este sim, é o que temos.
(*) Cristiane Lang é psicóloga clínica.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.